quarta-feira, 27 de junho de 2007

Uma ruazinha

Uma ruazinha com ar nostálgico. Era, sim! Uma rua sem calçadas, sem cimento, sem concreto. Havia um rumo para nela se seguir, sim, mas tudo formado com a ajuda do vento e dos passos marcados pelas pessoas que ali pisavam todos os dias, por todo o tempo; ao longo do tempo que a ruazinha existia. E existia, sim!
Às vezes passava por ela, parava, olhava, o que me deixava um pouco confuso ficar ali, assim absorto, buscando captar o que aquela ruazinha significava pra mim. Havia dias em que a grama seca era contrastada, paradoxalmente, às flores sempre vívidas, reluzentes que adornavam toda a paisagem da rua. Todas as casas, tanto as da direita quanto as da esquerda que delineavam e traçavam os limites da ruazinha, ganhavam vida com as rosas, gardênias, hortênsias, girassóis, orquídeas, margaridas e todas as outras que conheço muito bem; ganhavam brilho e escapavam à visão de tantas pessoas que as quisessem absorver somente com o olhar que logo se perdia no horizonte infinito de cores.
Também nunca soube dizer se era primavera. Apesar das flores sempre vivas, um sol fosco era sempre presente. Mal se viam sombras. Por vezes, cheguei a pensar que aquele lugar era mágico; que Deus não tinha poder sobre ele. Juro que o mistério de tudo aquilo hipnotizava, promovia divagações infindas. Bastava estar ali e toda essência da ruazinha fugia a qualquer explanação lógica. Outono sem graça, seco e constante, com árvores frondosas e altas que seriam refúgio perfeito para o casal apaixonado ou o peão que descansa fazendo a cesta depois do almoço num dia de verão. Não sei! As pessoas que nela viviam preferiam ficar quietas, pois, uma rua assim, apesar de toda beleza, afugenta com tantas incógnitas tangentes. Sendo assim, havia dias em que tudo se assemelhava ao mais intenso inverno, pela falta de vida aparente. Rigorosa proteção do frio que a ruazinha inspirava; mesmo sem chuva; mesmo sem neve.
Aquelas casas altas, grandes em espaço e beleza. Rústicas e com muitas janelas. Muitas! Vi muitas outras flores através delas. Vi muitos mundos à parte, dentro daquelas grandes casas. Em uma vi três crianças correndo enquanto uma suposta mãe preparava o jantar em uma panela de pressão. Eram os sons mais comuns, os das panelas, em vez de pássaros na paisagem. Lembro-me de que segui um pintassilgo até a janela de uma outra casa vizinha. Ficamos os dois assistindo à cena que se passava na tela daquela janela: uma lareira acesa e, ao lado, uma gaiola com dois passarinhos que cantavam com uma beleza tão grande quanto a de todas aquelas casas. Afastando-me, podia ver a fumaça da lareira subindo por uma chaminé, desenhando nuvens bonitas no céu que logo se desmanchavam e se fundiam com o mistério daquela ruazinha.
E era assim aquela ruazinha, bem ali, desenhada naquele pedacinho de azulejo. Às vezes lembro e penso: quantos pedacinhos de azulejo, como este, seriam necessários para compor uma cozinha, completar um salão de festas ou um banheiro?

Ludo

Hoje quero um amor de criança, pois ela é pura, doce, meiga. Quero um amor que me faça rir; que me faça ver a vida transformada em roda gigante, em pirulito, pipoca; pois, a mesma criança pura, doce e meiga sabe, melhor que ninguém, o que é ter um passe livre para brincar com a vida de forma responsável. Sabe o que é ser querida. Sabe o que fazer num parque.
Hoje quero um abraço de criança, pois ela é segura, verdadeira, hábil. Quero um abraço que me faça ser querido; que me faça ver o mundo como um enorme colo que acolhe, que afaga, que conforta; pois, a mesma criança segura, verdadeira e hábil mostra-se frágil e conhece o fato de que até mesmo Deus, um dia, teve um filho para poder provar a esse mundo a necessidade de sentir-se envolto e protegido.
Hoje quero um beijo de criança, pois ela é livre, é sol, é lua. Quero um beijo que me tire o fôlego. Que me faça ver as estrelas cintilantes em harmonia, em júbilo, em luz viva; pois, a mesma criança livre, sol e lua, sabe que essa falta de ar nos ilumina, leva-nos ao planeta mais harmônico do universo. Eu e ela; Gênese!
Hoje quero um olhar de criança, pois ela é mensageira, toca, é poesia. Quero um olhar que me desnude. Que sobressalte minha alma como num "Raio X". Que me mostre meus avessos, meus segredos, então, espelhados; pois a mesma criança mensageira, que toca e é poesia, também, um dia, nasceu e se encantou quando sentiu-se tocada.
Hoje quero o calor de uma criança, pois ela é quente, intensa e aquece. Quero meu coração aquecido. Que faísque meu pólo mais ermo e contagie, até mesmo, os vales onde não existem carne, nem osso... as cores que só existem em meus devaneios; pois, a mesma criança quente, intensa e que aquece é sábia quando se contagia com o fogo de sua própria existência. Sabe o que essas fagulhas valem; Chama!
Que o dia de hoje seja a mensagem de amor mais puro, com o beijo mais intenso, sabor pirulito. Que essas palavras toquem o céu de forma pura e que o sol que emana vida seja ainda mais aquecido por um abraço lunar. Que Deus leia e ouça meus desejos...
Ah, como é mágico imaginar essa como sendo nossa eterna gênese, minha terna criança!

O Baú

Resolvi jogar dentro do baú algumas peças. Resolvi, ainda, xeretar lá dentro e ver se há algo útil que escondi naqueles tempos. Eram tantas coisas pra jogar que resolvi começar esvaziando-o. Foi-se tudo, de uma só vez, ao chão. Virar o trambolho foi fácil. Não dá trabalho. Só meus trecos entenderiam a razão de tanto zelo. Se eles pudessem falar... Pensando bem, se pudessem falar perguntariam por que foram parar mofados lá no fundo. Eu fingiria que não escutei e manteria o sorriso tradutor de uma aparente saudade quase inerte. Eu forçaria, de verdade, manter o zelo que lutei pra que viesse à tona.
Uma a uma, todas me traziam presentes as vidas que ficaram só nas fotografias, as mesmas estáticas num desenho capturado no tempo.
Expor-me a tal reencontro não me fez cego. No entanto, não me fez ativo. Curioso! Pode um presente, que já naquela época era chamado de alegria, transformar-se numa mera reminiscência sépia, insossa?
Por qual motivo, então, eu quis jogar mais coisas dentro do baú antigo?
Através do baú, eu passava a dimensões que já vivi. Por meio dele, eu revivia as dimensões pelas quais passei.
Sendo essa minha desculpa para aumentar o peso do trambolho, lá pelas tantas tudo ficou misturado. Tudo eram presentes; tudo era passado.
Jogar tudo fora doía. Jogar tudo no baú pesava. E me emergia quase uma sensação odiosa de um espírito vivo-morto por não saber o que fazer ou perder tempo “selecionando” os momentos mais marcantes.
No final, preferi a dor ao peso e à quase morte. Optei por isso em virtude de um argumento não menos imposto que meu reencontro com o pó involucrado (feio assim, mesmo!): o mesmo tempo que açoita as lembranças na sua aparência e valores, pelo pecado do desuso, é o remédio e prêmio àquelas vidas que usam o seu passado como estopim de um futuro zeloso. E essas vidas não merecem o castigo de uma prisão.

Da Plantação à Colheita

Mais um talho no dedo e a cana deitada no chão se amontoa por um caminho que escapa à visão.
Queria ver Maria sentada lá no quintal da casa, pilando o café servido amanhã, com certeza! Um dia hei de casar com uma moça bonita. Ah, eu sonho, sim, entrar na igreja com aquela roupa preta e um lenço no bolso; o cabelo brilhando. Penso, sim, em ter família e comprar terra boa pra plantar. No dia do casamento quero meus amigos todos lá; minha família. Sei não, mas minha mãe vai chorar demais. Mas é de alegria. É! Um dia vou casar, mas é que agora ainda não posso, né. Ainda tenho que ajuntar dinheiro. E é tanto pouco tempo pra viver, que não conheço moça tem é tempo! Outro dia me lembrei foi das meninas da Vila Ipezinho. Êta, mas aquelas eram folgadas, viu! E não eram de confiança, também. Tinha hora que era uma querendo comer o fígado da outra e a outra querendo sentar a faca nas costas da uma... nem dava gosto. Ta vendo esse sangue aqui no dedo? É pouco. Já vi foi muito mais que isso. E não eram só elas. Na vila, nem os homens eram de confiar. O Darço que mandava na cidade parecia garrote que segue a fila e só levanta a cabeça se for pra desviar do rabo do boi da frente. Era um babão, aquele. Pastava na mão de qualquer um. Ainda tinha homem que botava banca de vaqueiro, tocava a manada, montava no lombo dos cavalos que trotavam no ritmo certinho. Quem tem rédea vai até onde quiser, ou até o cavalo morrer e trocar por outro, né. Tinha cobra na cidade, também, que nem aqui, só que é gente... Tinha hora que eu não sabia quem era pior. Se, de um lado, tinha o vaqueiro que era quem mandava de verdade e não levantava o rabo do lombo dos cavalos, por outro, onde se pisava tinha cobra traiçoeira. O Darço, coitado, nem via o que acontecia ao redor. Ou preferia não ver, né. Diz que, de gente assim, se desconfia duas vezes. Já vi a Miana e o Jerssi soltar os venenos na hora certinha. Um dia, dizem, né... não sei... que o Jerssi fez umas propostas de desposar a Miana lá detrás do monjolo. Miana não quis. Queria casar antes. Mas ficou nisso, né. Miana tinha apreço pelo moço; tinha simpatia. E ele, muita estima pela moça. Acontece que de tanto levar não, o Jerssi se engraçou com Dorinha, moça que chegou na vila um tempo depois, e a tal moça também começou a se arrastar pra ele. Resolveram noivar. Acontece que o Boloca, irmão da Miana, viu as proximidades da irmã com o Jerssi lá no monjolo e resolveu delatar. Aí foi farofa pra todo lado. A vila toda começou a falar mal do Jerssi e tomaram partido da moça. Resultado foi que ela resolveu falar que ele tinha era forçado, e que não falou nada antes pra proteger a reputação dela e a posição do moço, que até tinha certo prestígio. Ele bem que tentou se justificar, mas não deu. Teve que sair fugido e nunca mais vi o sujeito. Perdeu foi tudo, aquele. Daí a vila toda ficou sabendo e eu nem sabia quem era pior... se era o Jerssi que fez o malfeito ou se a Miana que mentiu, dizendo que foi forçada. Acho até bom não julgar, por quê, depois, quem vai parar no inferno sou eu. Já é meio desagradável viver com esse povo aqui. Imagina dividir espaço com eles lá na casa do tinhoso. Deus que me guarde disso. Prefiro ficar aqui na cana. Cá eu ganho pouco e talho o dedo, mas só me preocupo com a comida e a visão de Maria todo dia. Hei de casar com uma moça como ela, sim. Tem a Ruiva que se engraça pro meu lado, mas não chega aos pés da Maria. A Maria que é razão de sorriso. Se Ruiva tivesse as pernas dela; a beleza. Ah, se fosse dela! Ah, se fosse bela! Como ela, só o amor de Jesus que, aqui na vida, só se sente, não se vê. É tudo época! De plantar e de colher.

Zezinho, Joana e Um Amigo

Dizem que escrever histórias requer paciência. Dizem que pede inspiração; uma dose de imaginação, criatividade. Há outros que dizem que só se precisa da lembrança como companhia, sentada na cadeira ao lado.
Há dias em que sinto que as lembranças são chatas, a inspiração é uma companheira que só me faz querer sentar-me à rede e exercitar o silêncio vazio, a paciência parece uma conhecida de infância (e já passei desta há décadas!), com a qual não guardo mais qualquer relação de intimidade. Colocar as coisas em palavras, nesses dias, é o último recurso.
Li, outro dia, das várias páginas rasgadas por um autor na tentativa de escrever a primeira frase de sua história. Tem que haver a chama divina que traz à terra o sopro ou fagulha lingüística manifesta em sopa de letrinhas num papel.
Em uns dias, as letras aparecem como flashes ou imagens que não param de existir. Em outros, a câmara só tira fotos queimadas, desfocadas e ocas. E hoje é um dia que segue a segunda sugestão. É, também, um último recurso.
Como já perdi o sorriso e o prazer, vale qualquer rabisco que faça o tempo passar. Passatempo, sim! Mas, não lhe parece que o passatempo vivido nos tempos de criança soava mais leve e contente?
Antes de me justificar, rascunhei uma primeira frase:
“Quem imaginaria que a espera pelo próximo trem...”
E travei!
Vi a cena de uma jovem mulher parada numa estação à espera do trem de volta para o lar. Eu sabia como era o lugar. Poderia descrever, inclusive, o que se passava dentro da jovem de vinte e cinco anos que eu vi. Senti sua respiração, tinha certeza do que seu olhar triste queria que eu pusesse no papel, vivi com ela a mesma batida de coração. Ouvi o que sua alma queria me dizer. Porém, hoje é um daqueles dias em que me sinto incompetente. Apaguei a frase, e entreguei essa alma nas mãos de Deus. Minto! Virei as costas e fui embora, bem assim! Sobrou-me a culpa. Sorte ter como álibi o sentimento ruim que me justifica qualquer fracasso no dia de hoje.
Engraçado! Veja só como são as coisas!
Ontem rimos de um jovem que se aproximou dizendo:
- Se eu tirar um sorriso de vocês, ganho um trocado, moço?
- Sim, vamos lá! – e não tinha como ser diferente a resposta ao garoto com tintas no rosto.
Não sei a razão, mas minha intenção era simplesmente ficar sério todo o tempo, a fim de saber quantas coisas o tal menino sabia fazer. Deixei que esgotasse todas as tentativas.Umas sem grande graça, verdade. Outras engraçadíssimas! Permaneci sério. Foram contados três minutos e ele abaixou a cabeça e substituiu o sorriso inicial, em função da chance dada, pelo ar sério:
- É, moço! Desculpe-me! E obrigado pela oportunidade. Tem dias que a gente sente que faz, mesmo, papel de palhaço sem que fosse essa a intenção real, né? – E sorriu, saindo.
Mas gargalhei com o comentário. Assustado, ele virou-se e esperou o desfecho de minha reação inesperada.
- Tome aqui, rapaz! Você é muito bom no que faz! Deveria pensar em levar a sério sua arte. Todos os dias você está aqui?
- Sim! – sorridente e com ar de orgulho.
Despedimo-nos dele, felizes, e fomos.
Hoje, enquanto voltava pra casa, resolvi parar no mesmo lugar onde encontrei aquele jovem de ontem. E não havia criança alguma com rosto pintado. Mas tinha, sim, um moleque sentado no meio-fio, hoje sem máscaras e sem fazer qualquer questão de arrancar sorriso de ninguém. Aproximei-me, sentei-me e perguntei:
- Olá! Está de folga? Não tira sorrisos dos outros, hoje?
- Hoje não faço as pessoas rirem, nem pinto meu rosto. Mas, sabe, moço... tem dias que a gente sente que faz papel de palhaço sem que fosse essa a intenção real, né?
Fiquei em silêncio por uns instantes.
- Mas você não gosta, então, do que faz?
- Gosto, sim! É que hoje eu só queria descansar um pouco. Meus amigos pegaram meu dinheiro de ontem e sumiram. Acabaram me fazendo de bobo. Tô triste!
Conversei mais alguns minutos com o Zezinho e vim embora. Prometi voltar pra rever o novo amigo mais vezes.
O dia passou e creio que estou como o Zezinho. A grande diferença é que ele sabia o motivo do seu desconforto. E os meus são tantos, que nem sei qual deles usei como pretexto. Como pode? Os nomes que se dão às coisas são os mesmo. Tristeza, guardadas suas diferenças ortográficas e fonéticas características de cada idioma, tem o mesmo significado em todo canto; alegria é alegria em todo lugar; medo idem... Como pode a mesma coisa ser vista de jeito tão peculiar, no entanto? Como pode ser tão subjetiva a experiência de cada uma? E, logo, pode se desfazer!
Veja, foram-se minutos que preenchem quase uma hora de meu tempo, já! Parece que está funcionando. Só não consegui, ainda, uma idéia para escrever.
Há uma hora eu conversava com um grande amigo ao telefone. Certa vez ele me disse que o grande segredo da vida era abrir a geladeira, pegar aquela cerveja gelada e curtir os momentos antes da grande confusão. Lembrei-me da conversa àquela época:
- Mas, Zé, ela descobriu tudo e você nessa calma?
- Rapaz, só amanhã que vou saber do desfecho. Nem sei o que ela pensa disso. Vou me estressar pra quê?
- Ta certo! Até lá, a cerveja!
- Mas é óbvio! Uma loira de cada vez!
Sabe de uma coisa... Talvez, esteja certo.
Amanhã verei Zezinho. Temos muito que aprender. É estranho como em todo tempo é preciso fazer com que as coisas sejam vividas. Se não é pela inquietude que uma angustia gera, é pelo excesso de inatividade que esta mesma se manifesta e dá voz. O grande perigo é se perder nisso e a desorientação ecoa em tudo.
Quando me omiti há alguns minutos, a alma daquela jovem queria me dizer o seguinte:
“Quem imaginaria que a espera pelo próximo trem seria o início de uma viagem fascinante! Tal fascínio não me cegou os medos nem evitou as quedas que eu previa levar. Trouxe, daquela estação, todos eles comigo. Eram meus! Só não previa que, na bagagem, eu acrescentasse asas que me fariam conhecer jardins tão vistosos em minha volta ao lar”.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Versos da pouca prática

Do espaço vazio
à cabeça cheia
de idéias soltas,
o silêncio dói...

Mas, só quando não há
a voz irritante
de um anjo vadio
perturbando meus sonhos de herói.