Sr. Cidadão Gaia,
Gostaria, profundamente, de começar o ano bem. Sendo assim, não consigo encontrar outro meio, senão o de me delatar e esperar um veredicto que me condene ao que bem mereço.
Fui eu, sim, Senhor Gaia, quem espalhou a história que hoje faz de nós um povo tão perdido e mal-amado. Foi um ato invejoso e inconseqüente do qual muito me envergonho.
Era pra ser um mito, tão somente, que depois serviria como apreciação literária. Só apreciação! É tudo que eu sempre quis. Sempre cresci sabendo do sucesso de meus irmãos e queria ser como eles. Mamãe se orgulharia de mim, também.
Infelizmente, tomaram-se proporções grandiosas e o que era pra ser um passatempo transformou-se em tragédia in vivo et in loco.
Foi de uma historieta que surgiu todo esse inferno que estamos. Só Deus sabe o quanto me lamento!
Por diversos momentos, reuni-me secretamente com outros escritores frustrados a fim de criar a obra-prima dos mitos. A pretensão era transformá-la em um mito marcante, vívido, para que o guardassem para sempre como quem guarda para sempre as letras escritas em um pergaminho sépia.
Daí, ferrou-se tudo!
A história passou de boca a ouvido, como diriam os chineses. Sempre acreditei que o poder do som fosse mais marcante, como um concerto de Bach ou de Villa-Lobos. Era, ainda, uma forma de proteção, confesso. Por isso, nunca deixei que qualquer cópia impressa escapasse de meu caixa-forte.
No entanto, dada a necessidade, parece-me que escrevê-la possa alcançar mais rapidamente a mente de todos. Hoje, a preocupação, o pesar, a culpa e arrependimento me pesam quinze quilos, redondos, a mais que meu instinto de sobrevivência.
E aí vai a prova do crime...
Antes de rascunhar os borrões que se seguem como um desabafo, auto-delação ou pedido das mais sinceras desculpas, penso ser justo explicar alguns termos que saíram de minha mente fértil, para que o Senhor não se perca e possa me perdoar. São termos recorrentes:
Casa Platô – Templo construído em homenagem ao Rei Platus, figura importante da mitologia que originou o movimento politinítico, em uma elevação do Monte Alijhaera.
Monte Alijhaera – Local sagrado onde se hospedavam os deuses mais poderosos. Foi palco de diversas batalhas, onde os mais fortes eram promovidos e os mais fracos sucumbiam.
Politinítica – ideologia criada por Platus, cuja lei maior é adequar-se ao que mais for útil. Segundo os politínicos todo homem é bom ou mau, depende da circunstância. Estaria aí o segredo da felicidade.
“Do alto do Monte Alijhaera, Rahís (irmão do dono do universo, que estava licenciado por um problema na panturrilha esquerda) despachava o serviço quando foi interrompido por Platus, um jovem ambicioso, astuto e muito esforçado:
- Diz-me o que queres, Platus – pronunciou Rahís, pegando um copo de água e levando-o à boca.
- Quero ter meu próprio mundo, majestade. Cresci, aprendi e me julgo apto a ter minhas próprias regras, a gosto de meu bel prazer.
O vice-deus Rahís engasgou-se e, por meio de sua tosse, respingos da água, carregados de rancor, indignação e ira foram lançados aos quatro ventos da Terra, povoando-a de uma nova espécie que sairia de seu casulo após sete anos de mutação.
- Eis o teu pedido, Platus! Aí está tua nova raça. Cria, alimenta e ensina tudo o que julgares adequado. Só não te esqueças de uma coisa: um dia serás a inspiração maior da Uruborus. Vai-te, insolente! Irás voltar e te peço que não te inclines somente cinco graus a quem estiver neste trono. Caso contrário, serás morto. – e cuspiu em direção ao solo, lançando numa terra que, mais tarde, seria chamada de “Terra do Ipê-Roxo” a maior parte da água que ainda havia em sua boca.
Solitário, porém, orgulhoso, Platus desceu em direção à sua nova morada. Não entendeu aquilo como um rebaixamento, mas como uma exclusão, um castigo.
Pautado por seu caráter duvidoso, Platus escondeu-se numa caverna por quinhentos anos, alimentando-se de água da chuva, inicialmente. Logo depois, descobriu que podia usar as ovas do animal que mais o ameaçava à época: o esturjão. Era uma forma de extinguir o medo de ser exterminado por sua maior ameaça, bem como de alimentar a si e a suas crias. Assim, criou o que mais tarde seria chamado de caviar. Prosperou em seu plano e sentiu-se mais confiante que nunca.
Saiu da caverna e em sua aventura mais desafiadora, ordenou que suas criaturas se espalhassem pelos quatro cantos do mundo, propagando os conceitos de Subordinação Falseada. Lutou contra monstros marinhos e da terra. Preparou-se para sua batalha final durante milênios, até agregar ao seu grupo aquela que fez com que brotasse a ambição mais profunda que se já conheceu: Politéia.
Sedutora e mais astuta que Platus, convenceu-o de que o medo não faz prosperar.
- É verdade, Poli! Tem razão. Amanhã conquistaremos Alijhaera!
E assim passou a noite com o sono mais tranqüilo que já tivera em sua vida.
Acordou, montou seu cavalo e subiu o Monte Alijhaera, com todos seus súditos e Politéia ao lado.
Ao chegar ao topo, adentrou-se no salão principal e tamanho fora seu susto ao deparar-se somente com os rélys (povo devoto de Rahís, bastante inteligente, crítico mas altamente dependente das ordens do vice-deus).
Uma vez assim, obedeceram à ordem de retirada proferida por Platus. Resmungaram muito, mas saíram. Logo encontraram outro monte, mais abaixo, para habitar.
Na saída, Platus dirigiu-se a um deles:
- Vem cá! Onde estão os deuses?
- Viajaram! – e saiu, dando as costas a Platus.
Perplexo, Platus sorriu, deu de ombros e sentou-se ao trono.
Foi desse dia em diante que os ensinamentos politínicos passaram a ser conhecidos por aquela terra. Disseminou-se a prática politínica e proliferaram-se os casulos em todas as cavernas e buracos daquele mundo. Seres que não nasciam dos casulos, aderiam às práticas da ideologia e faziam disso sua razão de existência.
Todo o império politínico só correu risco de queda uma única vez.
Foi quando Platus, ao acordar numa madrugada para beber um copo d’água, surpreendeu Politéia com Sacro, o Sagrado em seu trono.
Ambos foram banidos e Platus reinou sozinho, com seus súditos à base de caviar e Subordinação Falseada.
Politéia viveu com Sacro pelo resto de sua vida, mas não conseguiram um reino no alto de um monte. Habitam de favor nas casas de quem os aceita como hóspedes.”
É esse, portanto, o mito-pai de toda a bagunça.
Não era pra levarem tão a sério assim!
Sem mais para o momento, espero por minha condenação conformadamente.
J.W. Grimm (o Caçula)
Recanto de Meio-Centro, 1 de Janeiro de 2015
P.S.: o endereço está no envelope.