sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

A Nascente

Ainda penso naquela nascente
lisonjeada, por certo, pelo que um dia fez:
na falha do ipê sorria, dormente,
em raios do sol (discreto e poente)
a pele de lua brilhante e cortês.

“Amor para sempre”: dissemos em jura.
Plantamos, crescemos. Raízes fizemos.
Em nome dos frutos vivemos tortura;
machados, fogueiras... Viramos moldura!
Mas, água e chão sempre em vida tivemos.

E um raio partiu nossa estrada em curvas.
“Sementes são tudo...” quem há de saber?
O rio dos corpos num dia de chuva
(que lava a pupila bem cinza, bem turva)
pode ser a sombra de um novo ipê.

Ainda penso naquela nascente
lisonjeada, por certo, pelo que um dia fez:
“Por que não te enterras ou ficas dormente,
torrente reduto de água demente?
Que fiques doente ou que morras de vez!”

De Sapos e Belezas

Nunca vi em reino algum
Bandeira que não se hasteie;
Nem ponte que não se eleve
Ou taberna que não sirva rum.

Nunca vi rei se fazendo de bobo,
Embora, muitos, só as vestes distinga.
Nunca vi herói que não se vista de ouro,
Nem bobo que não tenha língua.

Por incrível que pareça,
Toda bruxa é, de fato, desconcertante.
Todo mercador é bom de papo.
Mas, princesa que vira sapo?...

Ó, musa instigante...
Igual a ela, nunca vi, nem consigo conceber. Nem sei como terminar um poema por aquela que, de longe, só me diz tranqüilidades e sorrisos, em pensamento. De perto, bem... foi enquanto partia daqui, rumo ao reino de meu amigo Ferdinand. Foi um desvio de caminho que me fez aprumar a montaria, em fuga de uma tempestade que despontava no horizonte. Toda estrada é só um guia. Não há como dizer que ela seja o destino de alguém, pois ela não obriga. No entanto, ela se insinua. Sugere e induz a uma direção. Comumente, seduz. E, lá atrás, imóvel e sorridente, vi pegadas e paisagens se despedindo, acenando um “até breve”. Lá na frente o próximo passo, a próxima vista, sempre rumo ao norte. Fui seduzido mais uma vez. No entanto, o destino me parecia muito mais sorrateiro do que até então eu poderia prever. As sentinelas, pela primeira vez, mantiveram-se imóveis. À exceção das crianças e mercadores, ninguém mais notou minha chegada ao lugar estranho. Nem me barraram à entrada da cidadela! Não me cobraram pedágios! Não exigiram, de mim, deixar as armas confiscadas até que me fosse embora! Talvez eu já houvesse passado ali e todos me conhecessem. Era essa a impressão, mas posso jurar que não conhecia o tal lugar. Não me propuseram brandir espadas em qualquer momento. E eu me adentrei sem qualquer tipo de incômodo, até onde quis.
Resolvi parar em uma taberna. Era hora de me alimentar, aquecer o corpo febril e trocar as roupas encharcadas de chuva. Sentei a uma mesa, lá no canto, enquanto ouvia a música alegre e esperava pelo bom moço trazer rum e comida. Bebi, bebi e comi. Mas a febre teimava e as danças e risos não amenizavam o efeito do frio. Bebi um tanto mais e me retirei aos aposentos.
Daí, só me lembro de um coaxar junto ao meu ouvido.
Não era abrir os olhos que me faria mais descansado. Porém, não eram os olhos fechados que trariam maior sossego. Vi o sapo me olhando, juro, aconchegado em cima de um baú de madeira que havia ao lado esquerdo da cama. Foi por puro reflexo que resmunguei:
- Que você quer aqui, sapo? Deixe-me dormir em paz.
Mas, ouvi de volta:
- Sou rã, não sapo.
Assustei-me com a voz. Era sonho, claro!
- Como assim?
- Sou rã. Desculpe-me pela abordagem, mas sigo-o desde que adentrou a cidadela.
- Por que eu?
- Sei quem é Vossa Majestade. Encontramo-nos, ao acaso, durante a primavera, no torneio. Muito me preza saber que Vossa Majestade é hábil com armadura. Mas, parece-me que os galanteios em trajes mais leves não demonstram habilidade tão fina nos reinos de lá.
Delírio pela febre, havia de ser; cônscio, no entanto. Era ela, com toda certeza! Durante o baile do torneio, não consegui deixar de segui-la com o olhar. Havia muitas pessoas, muitos nobres e, de todo o salão, foram os olhos dela que me cegaram. Hei de assumir que a reciprocidade existiu, embora essa certeza seja a que me aponte a inabilidade a qual ela se referiu.
- Mas, então, é você a nobre pela qual me apaixonei e que sumiu sem mais deixar qualquer sinal? Aliás, nobre? Nesse pedaço de terra plebeu?
- Pelo que me aparenta, não sou a única a rondar por estradas menos nobres. Quanto à minha condição real, não me reconheço mais como princesa, é bem verdade. Esse é o Reino de meu pai.
- Mas, não faz sentido! Desculpe-me, mas toda princesa sabe de sua condição e não se perde o título. Se esse é o Reino de seu pai, por lógica, também se torna seu.
- E como posso assumir tal responsabilidade se me transformei em uma figura repugnante? Talvez a honradez em negar esse prestígio seja meu único sentimento nobre.
- Já vi outros amigos virarem sapo. O próprio Ferdinand casou-se com Louise nessa condição. Era ele o sapo, e ela seu antídoto. Por curiosidade, também pedi um feitiço e, por um dia, pude saber o que é ser sapo. Mas, nem mesmo nas histórias que se contam, as princesas são empenhadas em tamanha crueldade. Qual a prosa dessa sua condição?
- Um feiticeiro chamado Fíar resolveu que, pela falta de coragem de meu honroso pai em conquistar novas terras, sua maior conquista, eu, seria transmutada em rã, por todas as noites chuvosas que ilham nosso Reino. Sombrio também traduz o semblante de meu pobre pai. De que adiantam vestes nobres se o espírito não consegue vender um sorriso, sequer?
- Pois, sendo assim, ainda há dias em que o feitiço não surte efeito, certo? Só toma essa forma em dias de chuva...
- Não sei se notou, mas a nuvem que toma a cidade é constante. É acima dela que habita o feiticeiro. Além de cruel, invejoso. Merlin já se pronunciou em ataque ao plágio, mas, logo depois, desistiu do intento, julgando haver maiores importâncias em sua vida do que os caprichos de um mago menor.
- Diga-me: existe remédio para a mágica? Todos sabem que sempre há uma poção para todo feitiço. Não seria justo que, além de todas as estranhezas dessa estória, fosse essa desgraça mais uma exceção ao seu caso.
- Nem todo crime é perfeito, como bem sabe. E nunca há de ser. A julgar pela falta de coragem de meu pai, Fíar nunca ousou pensar que algum cavalheiro ou príncipe se interessasse por mim. Não haveria atrativo algum em se querer casar com a filha do Rei de cá. Amor é o antídoto.
- Um beijo, então?
- Não! Amor!
- Há algo nisso que justifique você ter me seguido desde que cheguei aqui?
- Desde o baile, é o sentimento que nutro por Vossa Majestade.
- Por noites seguidas, também estive em sonhos, reinos, jardins, cidades à sua procura. Nunca abandonei esse desejo. Ironia pensar que não fui eu, mas você quem me encontrou. Deite-se aqui e proteja-se do frio. A feiúra que em mim habitava até hoje, há de se transformar ao amanhecer. Vejo suas palavras mais nobres que a aparência que se me mostra. Há de ser sol e estrelas amanhã.
Seu semblante resplandecente fundiu-se com o sol dourado que adentrava a janela pela manhã.
De todas as constelações que vimos, ainda hoje contemplamos uma a uma. É esse nosso brilho.
Essa é nossa história e aproveito sua distância para ocupar-me ainda mais dela em meus pensamentos. Hoje existem três reinos, para nós: o dela, onde se encontra agora muito feliz, após o banimento do feiticeiro e da liberdade heróica de seu pai; o meu, aqui, ansioso por seu retorno daqui a duas luas; e o nosso, que não nos abandona, onde quer que estejamos.
Ocorre-me uma inspiração maior, nesse momento, quanto ao poema que iniciei.
Suprimo a última estrofe e finalizo assim:

Por incrível que me pareça,
Se o amor que nunca chegou
Ora se mostra como fato,
Que mal há, se já fui sapo?

As Ilhas Antítese

Aqui na ilha não há vida. Nem a minha se apresenta com fôlego maior que um sopro tímido. Aqui na ilha não há peixes, ainda. Vi pequenos cardumes se refugiarem na ilha de lá que nem vejo mais. Quem sabe não voltem amanhã. Aqui na ilha não há comida. Sempre vejo peixes pularem daqui pra longe no mar. Só os bichos que aos poucos foram pra ilha de lá. E estes, já nem os vejo mais.
Pensei que nunca estaria sozinho aqui na ilha. Mas agora estou. Nem mesmo os cocos que estão em todas as ilhas de que me lembro... aqui não estão. Ô mundo oco!
Sob o sol escaldante me pelo a pele enrugada e mais enrugada pelo mar salgado que só me salga a boca. Nem pra minha sede ele é útil. Até esse pedaço perdido de terra me ampara melhor.
De todo canto dessa ilha só ouço o ruído irritante desse mar insosso e só vejo espuma branca que se ergue nele, com mais areia pálida e garrafa de vidro... garrafa?! Juro que se agora não estivesse segurando a garrafa de vidro, diria ser uma miragem “miragem é no deserto, oras!”, alucinação... sei lá! E há papel dentro.
[Diário: ontem fui pego pelos guardas do rei. não me insulta o despropósito, pois meu irmão, por sorte nesse acontecido, estava com trajes que o confundiam com minha figura. só lamento o infeliz não ter se pronunciado em minha defesa. faria qualquer coisa para defendê-lo. sua infelicidade torna-o imaginável assim, não pela sua omissão perante o irmão, mas por sua vida desgraçada. daqui ouço os guardas amaldiçoando meu nome. seus olhares também me condenam quando passam em frente a minha cela. fito-os, mas não alimento ódio. só me ocupa a mente minha tortura daqui a três dias. que destino me aguarda?]
Há letras no papel. Será que saiu de uma ilha essa garrafa?
[Diário: hoje ouvi, pela manhã, o guarda falando da tortura da gota. minha morte seria lenta. gotas de água caindo sobre a cabeça vagarosamente, até que seja perfurada e cause algum tipo de dor em minha mente.]
Há frases nesse papel. Quanto tempo pra chegar ao mar aberto?
[Diário: é noite, novamente. o silêncio me deixa sem sono. lá fora nem parece haver vida. nem mais consigo imaginar os fanfarrões nas tabernas em algazarras que duram noite adentro. Corinas, Luzias, Celestes... estas só riem, choram e gemem, ao mesmo tempo, em suas alcovas. fora delas são sérias, amarguradas e toscas, como eu com olhar morto rumo a um horizonte sem cor. durante a tarde, ouvi rumores de minha execução, acredito. sugeriram ao rei meu enforcamento. amanhã decidem por mim meu futuro, ou destino, já que esse é um fim. o tilintar das chaves me adormece logo.é ronda...]
Letras minúsculas sempre! Faz lógica? Toda frase começa com a letra maior, qualquer um sabe. Quando eu escrevia era assim. Um dia me pediram uma matéria sobre justiça. Mataram alguém na rua. Só me lembro de que justo era o juiz. Nem sei mais se foi ele o justo.
[Diário: manhã cinzenta. gris da cela, da parede, do chão, dos meus olhos e de quem está perto. esticar-me-ão pés e braços. crescerei até arrancarem-me tudo. crescimento vão. crescimento vil. pequeno, faço-me presente, tanto que estou preso. nem em tortura os prazeres são deixados de lado. Biltriz me chamou em segredo e comentou um plano de fuga.]
Essa história... parece coisa de doido! Admira-me como ele conseguiu lançá-la ao mar e veio em minha direção. Quanto tempo pra chegar até mim?
[Diário: é tarde. há sol lá fora. um guarda me disse que meu destino seria a guilhotina. Isso não posso admitir! Separar meu coração de minha cabeça... Isso não! Deus me proteja em meu intento daqui para frente. Prefiro que minha alma chegue inteira aos céus. Biltriz me mostrou o local da fuga numa parede da prisão.]
...
[Diário: Noite chuvosa e chorosa. Mas um choro de alegria é o que me toma conta por dentro. E por fora também. As gotas do céu molham minha cabeça e papel, e meus olhos também embaçam por si só. Meu irmão livre está mais perto de mim em memória. Mas posso me distanciar dele em matéria, agora. Lançarei esse diário ao sol, aos ventos e à água. Que se queime o que for necessário. Que mergulhe se for esse seu destino. Ou que alce vôo. Agora, meu árbitro sou eu, livre. Até breve, destino!]
Enquanto nado, queria saber quantos dias esse diário viajou preso, dentro da garrafa. Os peixes e os bichos da ilha de lá, onde estão? É aquela. É naquela ilha... esta... é nesta que há vida.

Adivinhas!

Esta é uma espécie de brincadeira "o que é, o que é?" feita despretensiosamente. A resposta diz respeito a um instrumento musical:
A Arte de Quem?
Como pode, no mesmo corpo, masculino e feminino agirem de maneira independente e harmônica, ecoando sons em equilíbrio?
Se a delicadeza dela hora se expande em movimentos milimetricamente calculados, o passo preciso, longo ou curto do rapaz dá cor ao soneto.
Imagine somente duas estações por ano.
Imagine arco-íris sem vermelho.
Quem nunca parou pra olhar o encontro do sol e da lua e não pensou em união?
Pois, pense se o sol fosse só o sol e não divagasse em pensamentos sobre sua companheira delicada, introspectiva e misteriosa. E se a lua morasse sozinha lá no céu, será que brilharia vistosa?
É bem essa a relação dos dois de quem digo.
Ele os guia pelos cantos que se pode ir. E de nada valeria ir, se não fosse o apoio preciso da companheira que permite o passeio.
Seria ele mudo ou cego em tiroteio, ela uma espécie de sindrômica do pânico que só consegue dar seis ou sete passos sozinha.
É nessa dependência saudável que os dois sorriem, choram, crescem, discutem e constroem a relação.
É de unha crescida e bem cuidada, bem como de mão calejada, o segredo sinfônico de tanta paixão.
A morada dessa orquestra?
Sou eu quem pergunta se há qualquer sugestão.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Reflexo

O amor?
O amor não tem poder.
A não ser o imaginado
por quem o vê.

Nem, tampouco, inexiste.
Já notou o riso solto
dos olhos saltados
de quem era triste?

É o amor que se me mostra?
Será eu quem o mira?

- Filho,
É que há duas portas
entreabertas nessa trilha.

Juras

Das juras que se fazem enquanto inebriado de amor, somente as pronunciadas parecem ser verdadeiras; e só parecem, pois, haja repetição para que essas se tornem verdades incontestáveis. Depois de muito repetir o ritual, o Gera passou por uma que não esperava.
Sair do trabalho na sexta-feira era motivo de sorriso. Todos sabiam disso, mas Gera sempre contou com Dora para fazê-lo exímio nessa arte. E lá ia ele. “Hoje é sexta, Gera”. – dizia um; “Ah, Gera, que meu fim de semana seja tão bom quanto o seu” – brincava outro. E lá ia Gera.
Toda sexta-feira era o mesmo caminho. Do trabalho, seguia para o trabalho de Dora, e porquanto não findava seu expediente, era tempo de sentar-se para ler uma revista e tomar um chá. Quinze minutos atento à leitura e um “eu te amo!” dispersou seus interesses para a mesa ao lado:
- Eu também! – dizia ele, olhando nos olhos dela.
- Ah, assim não vale.
- O que não vale?
- Fala direito.
- Ta bom, então! Eu amo você como nunca amei ninguém na vida! – sorrindo.
- Lá vem você querer me comparar. Que mania!
- Claro que não! Só estou enfatizando meu amor por você.
- E precisa falar das outras?
- Mas, meu amor, estou falando é de você, só pra você. Nem pensei em ninguém.
- Ah, então fala assim, aleatoriamente? É só da boca pra fora? – meio manhosa, porém, com raiva expressa e evidente.
- Você complica as coisas, heim! – e se afastou.
.....................................................
- Pôxa, eu só queria que dissesse “eu te amo”.
- E eu disse. Você que parece que não acredita nunca! Daqui a pouco vai querer levar isso pra análise. – e sussurrou um “ e bem que precisa”.
- Que foi que você disse, Júlio?
- Eu não falei nada. Só falei que fico chateado quando você precisa que eu diga a toda hora que amo você. Que necessidade é essa, Deus do céu?! Já tirou meu humor e a culpa é sua, Cléo.
- Era tudo tão simples! Não precisava chegar a esse ponto.
- Ah, é? Pois então tem que ser tudo do seu jeito, não é, mesmo? Vou fazer do seu jeitinho. Quer ver só?
Gera, só nesse instante, tirou a revista que ocultava sua atenção na conversa, pois, o tal Júlio levantou-se e profetizou como nos tempos da Roma Antiga, a quem quisesse ouvir:
- EU TE AMO! – e ainda saiu, baixinho, depois da declaração, um “cacete!”. Sentou-se, cruzou os braços, armou o bico e perguntou em tom baixo: - Ta feliz agora?
Duas velhinhas que passavam com sacolas de compra nos braços abraçaram-se, pálidas, e seguiram caminho olhando para trás. O músico diminuiu o som do violão e começou a murmurar a música que cantava, fixando o olhar nos dois. Uma criancinha que passeava com seu irmãozinho mais velho virou-se para seu pai e perguntou se o moço estava bravo, no que o pai ironizou “Não, minha filha, eles só estão brincando. Um dia você entende”, e sorriu. À exceção de um segurança que prontificou-se a uma vigilância mais próxima e os vendedores fuxicando entre eles em tom de zombaria, só Gera tentou agir de forma natural.
- Não precisava disso, Júlio. Deixa de ser ridículo. Ai, que vergonha, meu Deus! – abaixou o rosto com a mão sobre a testa.
- Se não está satisfeita, fale. Melhor dizer o que pensa. Parece que nunca está contente com nada do que faço.
- Só queria que me dissesse “eu te amo!’, eu já disse.
E, justo nessa hora, a loja de discos resolveu aumentar o volume da música de um cantor que estava na moda, anunciando a promoção. Gera não ouviu mais nada, mas pôde ver o Julião se aproximando do ouvido dela, pronunciando umas palavras que a fizeram sorrir e beijá-lo.
“Ué, rápido assim?!”- pensou.
Gera só não teve a certeza do que ele dissera, mas Dora chegou nesse instante. Prontamente, ele se levantou e sussurrou baixinho:
- Amor, quantas vezes eu preciso dizer que amo você, para que acredite que eu amo você?
- Ah, amor! Que pergunta!... Mas, quer saber, mesmo? Sua carinha me diz isso a toda hora.
Diz o Gera que aquele foi o fim de semana da certeza de que ela era a mulher de sua vida.
Também, cá pra nós, Gera, já não era sem tempo. Doze anos de noivado!

A Arte em Preto e Branco

Diz-se da arte como uma paixão. Diz-se dela como um sentimento; como algo que fuja à razão. “A arte só é arte quando é sentida” ou como diria um mestre da arte escrita: “De todas as coisas humanas a única que tem seu fim em si mesma é a arte”.
Admiro-me, por vezes, quando assisto a uma crítica relacionada a qualquer espécie de arte. Parece-me que se foge um pouco (para ser ameno) do contexto visceral e veste-se a máscara da testa franzida e do olhar compenetrado, austero e sóbrio (comumente sombrio).
Pois...
Foi com uma figura dessas que adentrei o Museu de Arte de Vaneio. Ela uma figura séria, formal e acolchetada na “ciência da arte” dos pés à cabeça, de corpo e alma, embora esta última esteja em segundo plano quase sempre na mente dessa minha amiga:
- Note os detalhes da fachada. Muito bem planejada! Parece quase que uma transição do Barroco para o Iluminismo... – não me lembro exatamente quais desses períodos da História ela citou. A mim tudo parecia técnico demais. - ... Bravo! Magnífico!
Eu, o oposto, aquela figura informal, curioso assumido de jeans e camiseta branca fui me aproximando e à medida que subia as escadarias do museu, a cada degrau, mais me vinha a imagem de castelos medievais com grandes cavaleiros e brasões dourados, representantes de cada reino de todas as partes do mundo, reis e rainhas e a corte bailando em seus salões sem fim ao som dos minuetos. Fazia bem aquela sensação!
Enquanto minha amiga não deixava escapar o mínimo detalhe com uma teoria e um profundo conhecimento racional sobre o chão, teto, paredes, ornamentos, cores, vasos, brilhos, formas... eu apenas me preocupava desintencionalmente em reparar aquela casa como um todo (coisa de leigo). Chamo aquele lugar de casa por ser dessa forma, mesmo, que o via e vivia. “Um aconchego aconchegante”, como diria minha sobrinha sempre que ia passar férias na casa de praia da família.
Enfim, começamos nossa via crucis.
Não me lembro muito bem dos comentários de minha amiga. Eu me punha absorto demais no vislumbre de cada obra. Porém, lembro-me perfeitamente das horas em que ela expressava alguma opinião movida pelo sentimento puro. Comecei a notar que todas essas manifestações emotivas que ela deixava escapar eram sempre advindas de fora dela, uma força exterior a ela, como num senso comum. Mas, parece-me que ela percebera tal mecanismo. Explico-me melhor com uma memória que me ocorreu quando admirávamos o último quadro da exposição.
A idéia do evento era contar a história da arte através de pinturas que representassem cada período da história do homem, enquanto artista expresso e assumido. A última tela, no entanto, é que me fez confundir a minha história com toda aquela apresentada e idealizada pelos organizadores da exposição.
Era uma espécie de mosaico. Com certeza representava um desses movimentos artísticos, mas não sei dizer qual era. A tela só possuía variações de branco e preto. Cinzas claros, cinzas escuros, brancos encardidos... negros e brancos, dos mais claros e ofuscantes aos mais turvos e mortos. Havia formas redondas, quadradas, retangulares, mas que se juntavam em meio àquele pedaço de pano e constituíam outras formas sem nomes e algumas que lembravam sombras, vultos ou nuvens que, como quando criança, faziam-se por assemelhar a algum bicho. E foi uma nuvenzinha dessa, no quadro, que me fez lembrar um dia, quando criança, sentado à sombra do salgueiro chorão. Eu passava as férias na casa de minha tia e o único lugar que me deixava viajar em meus joguinhos, quase oníricos, infantis era exatamente sob a sombra do salgueiro chorão. Era, de fato, aconchegante. Ali eu criava meu mundo e minhas estórias com os animaizinhos que as nuvens desenhavam para mim lá em cima, no céu. A última figura que as nuvens fizeram nesse dia, que eu me lembre, foi um bebê. Minhas vistas o acompanharam até que fosse ficando menor... e se distanciava... e foi diminuindo... diminuindo... diminuindo...
Despertei num outro lugar. Um descampado enorme com um gramado que mais parecia um tapete real. Continuava sendo o quintal da casa de minha tia, mas era muito maior do que eu percebera, até então. E foi olhando pra baixo, ao meu lado, que notei uma árvore que ainda começava a brotar do chão. Era o salgueiro chorão, ainda nascendo; brotando da terra onde se ocultara durante algum tempo. Lembro-me de ter deitado sobre a grama daquele novo quintal e de ficar admirando de perto, bem de perto, o salgueiro que começava a crescer do chão. Como uma criança que pela primeira vez abre os olhos e se depara com um mundo até então nunca visto, dei-me conta de que não havia cor ao meu redor. Era um sonho em preto e branco. Eu também era parte dessa mistura e a única coisa que tinha cor era o salgueiro que passava da sua infância para sua adolescência num ritmo acelerado, mais acelerado que o comum. À medida que ele crescia e, agora, começava a conseguir produzir sombra e proteção a quem nele se abrigava, algumas cores começaram a nascer. Logo o gramado incorporava-se de verde. O mesmo verde das folhas do salgueiro. A terra tingia-se do mesmo tom marrom do tronco do chorão que, nem de longe, transparecia qualquer sinal de choro ou de tristeza. Tudo que se aproximava dele parecia ganhar mais vida. E tudo que tinha vida se aproximava dele. Ninhos, sons, cores, formas sem nome, luzes, vidas... até que tudo ao nosso redor havia sido tomado da energia liberada pelo salgueiro chorão. Deitei e me apoiei em sua base, protegido em sua sombra, e uma folha que se precipitara de um de seus galhos começara a me incomodar o rosto. Foi então que despertei sob a sombra do salgueiro, com Rex, o cachorro de meus tios (e meu grande companheiro), lambendo meu rosto, avisando-me que o almoço estava servido.
E, exatamente nesse instante percebi, no museu, que minha amiga estava balbuciando algo em meu ouvido. Só me recordo do final da frase que ela disse:
- ... você não concorda?
- Sim... claro! Estou acordado! – disse eu, ainda sob efeito onírico.
Ela ainda virou-se para mim com um olhar sobressaltado, mas preferiu não dizer nada. Voltou-se para frente, deu mais uma olhada na tela, suspirou e proferiu em baixo tom:
- Gostaria de voltar aqui amanhã, novamente. Você voltaria comigo?
Um mês depois ela ganhava seu primeiro prêmio jornalístico e eu, pela primeira vez em minha vida, freqüentava aulas de História da Arte.

Paz

Paz que me ronda,
Paz,
Que me sonda
Em voltas tão longas,
Que não me toca
O corpo,
Perde força,
Jaz.

Paz que, presente!,
Louca por assim se fazer,
Não se faz,
Não me afaga,
Nem me traga;
Trisca,
Chama colo:
Pais!

E,
só assim,
então,
Autopacificarmeei.

"Vita Longa" Ou "O Ciclo"

... e assim teve início um novo ciclo:
Maria e José. Testemunhas não faltavam àquele momento. Cúmplices de duas almas ainda mais cúmplices entre si, que ali entregavam-se às leis que não se podem ver; as mais sagradas e talvez as únicas que se possam conceber como tal. De joelhos. De mãos dadas. De costas para todos e à frente de todos. De frente e à mercê dos mandamentos e da presença espiritual a que se comprometiam carregar consigo para o resto de suas vidas. José era só sorrisos. Maria também, embora pudesse estar pensando em sua “vida”. Era assim que ela o chamava antes de conhecer José. Mas, ali estavam. Sinceros como sua fé poderia ser. Unidos e sem espaços, completos como uma aliança o é: o primeiro casamento.
Tão verdadeiro era João. Fruto da ex-desventura de Maria. Sério, fixo e quase imóvel. Talvez pensasse na estranheza e, ao mesmo tempo, na grandeza daquela cruz a ele oferecida: o primeiro pai.
Muitas primaveras, alguns invernos e três quartos de ano. Para João a resignação e, só então, a não dúvida do que ali a natureza fazia brotar. Para Maria e José a certeza: o primeiro filho.
Alguns anos se passaram e um dia receberam uma visita. Eram os padrinhos, ou testemunhas, de seu casamento. Também tinham uma filha. Por homenagem, também chamava-se Maria. Trouxeram uma lembrança ao Pedro, o filho do casal. Era um conjuntinho de médico com toda aquela aparelhagem que é vista em um consultório. Maria e Pedro brincavam ao canto da sala. Padrinhos e casal conversavam às gargalhadas que só a saudade é capaz de fazer renascer. E, detrás da cortina, um quase adolescente observava atento à cena que as duas crianças se preocupavam em ensaiar, num misto de inocência e instinto: o primeiro beijo.
As fraldas, então, foram abandonadas. Em seu lugar gírias, cigarros e ideologias. Maria e Pedro já completaram dezessete anos; quase dezoito. Em meio a sonatas e baladas destoantes, uma noite fez-se especial. Uma nova melodia ecoando pelos corpos. Uma transformação; uma mutação, na verdade. Todos os sentidos rendidos: o primeiro amor.
Naquele altar Pedro. Logo atrás Maria, José e João. Sentados, juntos e separados ao mesmo tempo. De corpo faziam-se presentes, mas, de espírito eram distintos. Cada um trazia o passado consigo àquela Igreja. Quantos mundos existiam naquele instante? A única certeza que tenho era a presença de Maria no mundo interno de Pedro. Fora e sempre será: seu único amor.
“Por onde será que ela anda?” – pensou Pedro.
De qualquer forma, não adiantava mais. Era tarde. O ciclo dela cessara para Pedro e para qualquer outro que ali estava. Foi-se. Fugiu ou simplesmente desistiu. E quem ficou tentou adequar-se a um plano sobressalente, assim como Pedro: seu segundo casamento.
Pedro também pensou em sua “vida”. Resolveu levá-la junto. Não desistiu e nem ajoelhou-se diante dela. Sem esforço, sem pressa... um sorriso e o choro: seu segundo filho.
Uma segunda chance de viver: assim quis Pedro. Assim o fez e viveu até o dia em que recebeu uma carta de seu irmão João, quando percebeu que talvez precisasse de um fôlego a mais.
Chegou pela manhã naquele quarto de hospital. Seu irmão o recebeu, conduzindo-o ao leito onde seu pai repousava. Era um dia de sol. Era primavera. Conversaram sobre todas suas vidas. Juntos. Riam e choravam. Sentiam-se unidos...para sempre.
Durante a noite, enquanto cochilavam, foram todos acordados por José ao mesmo instante. Todos em pé, rodeando a cama ouviram suas palavras; sua ode à vida: “sempre os terei em mim. Amo vocês!”
Deu seu último sorriso...
...e assim teve início um novo ciclo:
Maria... José...: completos como uma aliança o é.

Ossos do Ofício ou Loucuras de Ofício

Cada louco com sua mania



Quando César formou-se em medicina, não sabia que seus anos de residência renderiam boas risadas no futuro. Parecia menos provável, ainda, pela opção que tomou enquanto especialista: virou psiquiatra.
Num daqueles hospitais-dia, era rotina o doutor César chegar às sete e meia da manhã, todos os dias. Comum, também, os plantões aos finais de semana em outro hospital no centro da cidade. À base de café e cigarro, chegava à conclusão de que, naquele ritmo, era ele quem precisaria de um cuidado logo, logo!
Mais um dia típico, e lá ia doutor César com seu passo apressado e maletinha preta na mão direita, rumo à sala de atendimentos.
Naquele dia, a primeira consulta era o Seu Nério.
Este foi diagnosticado havia três anos, com traços de esquizofrenia ou algo que o valha. Não sei, direito, o que o César me disse. Sei que ele apresentava alucinações visuais e, comumente, conversava com o espírito desencarnado de um centurião da Roma Antiga e tinha o “rei na barriga, só porque era um dos preferidos do imperador”. Era isso que o Seu Nério falava do defunto, sussurrando, quando este não se fazia presente.
Após esse tempo todo de tratamento, o doutor César achava que já era hora de deixar o Seu Nério cuidar de sua vida sem as medicações. Estava tudo às mil maravilhas e o prognóstico não poderia ser melhor.
- Bom dia, Seu Nério! Como foi a semana?
- Tudo bem, doutor! Não tenho sentido mais nada e consegui um emprego essa semana, de garçom, num restaurante chique lá do centro.
- Mas que coisa boa! Então quer dizer que já está pronto para receber alta? É isso?
- Como assim, doutor? Acha que estou bom, já? Não preciso mais usar os medicamentos?
- Calma! Deverá usar, sim, a medicação, por um tempo. No entanto, vou diminuir a dosagem e, a partir de agora, nos veremos menos vezes. Ficará livre do tratamento em breve e não precisará mais passar as manhãs aqui no hospital. Poderá voltar à vida normal. Que acha?
- Que maravilha! Acho que estou pronto, sim!
- Ótimo, Seu Nério! Vou preencher esse formulário e... pronto! Agora é só entregar pra secretária e estará livre. Boa notícia, Seu Nério? Feliz?
- Sim, doutor! Por demais! Queria agradecer por tudo, viu, doutor. Foi muito importante pra mim, nesse tempo todo. Se não fosse o senhor eu não sei o que... doutor, o senhor tá pegando fogo!
O sorriso do doutor se fechou na hora e franziu a testa.
- Como é, Seu Nério?
- Doutor, o senhor tá pegando fogo!
- Mas como você me faz isso? Estou pensando em dar alta e...
- Doutor, o senhor tá pegando fogo!
- Calma! Dê-me, aqui, esse formulário e vamos conversar um pouco.
Mil coisas se passaram pela cabeça do doutor. Questionou-se, inclusive, se estava na profissão certa e que tipo de profissional era esse que dava alta a quem é doido de pedra, o Seu Nero (pensou).
- Doutor, o senhor tá pegando fogo.
E, antes que o doutor se levantasse para pegar o formulário, o paciente se precipitou e saiu em direção a pia que havia na sala, gritando “fogo!”, encheu a mão de água e tacou no doutor. Foi, então, que o César sentiu um certo cheiro de queimado e, de onde, ele não havia percebido, ainda. Olhou à sua volta e nada. Tirou os óculos e, seguindo o fedor, notou que, do bolso de seu jaleco, o fogo já tomava conta. Quase perdeu seu uniforme. Mas, depois do corre-corre e da gritaria toda, foi forçado pela diretoria do hospital a tirar umas férias e viajar. Nunca mais, também, esqueceu-se de colocar o cigarro aceso no cinzeiro em vez de guardá-lo nos bolsos, pensando ser uma caneta; a mesma que dá alta a seus pacientes sãos.

Perguntar Não Dói

Outro dia, conversava com uma amiga que há muito eu não via. É gostoso reencontrar pessoas queridas. Boas novas soam como alento à alma; as novidades. Matamos, um monte, as saudades! Hoje ela está empregada e feliz por ter conseguido um trabalho em sua área de formação (ela é advogada). Lamenta-se do salário mixuruca que recebe, sabendo perfeitamente o tamanho do seu valor. Mas, isso não tira seu bom-humor habitual. Está em paz com sua família. O casamento não tarda em chegar, pelo visto. É só questão de tempo.
Lá pelas tantas era ela quem questionava a minha vida. Daquela época em que nos conhecemos, ela trazia a lembrança de que eu estava solteiro. Não sei por que cargas d’água, mas sua espontaneidade demonstrou-se vacilante por um momento e me perguntou num tom baixo:
- E o coração? Nada, ainda?
Juro por Deus que me senti aquele pai de família que sai de casa segunda-feira às cinco e meia da manhã, rumo à fila de emprego, em busca do seu lugar mais sombreado na vida, ainda que com o salário mixuruca e que, ao chegar em casa, a família reunida na sala, ansiosa pela resposta do homem, não tem coragem, sequer, de pronunciar a palavra “emprego” ou de perguntar se deu certo, e sai somente um “e aí?”. Parece que se evita uma ofensa ou um palavrão pronunciado que pode gerar, no mínimo, o risco de um ataque do miocárdio ao doente em questão, já sabendo que a resposta é um cabisbaixo balançar de cabeça e penoso “nada, ainda!”.
Comecei a rir sozinho e expliquei a ela o que me havia ocorrido naquele instante. É engraçado como algumas coisas parecem tabus. É um cuidado que se tem em certas áreas da vida de uma pessoa, sob a intenção de não expô-la ou abrir uma ferida delicada num coração que pode estar sofrido.
Foi, então, que saltaram às idéias outras situações curiosas e semelhantes a essa.
Há aqueles que se utilizam, como compensação a uma gafe movida por esse tipo de curiosidade “perigosa”, uma espécie de auto-nomeação que justifique o ato. Já conheceu alguém que tenha dito, com certo ar de soberba, algo do tipo “eu sou autêntico!”? Eu já conheci alguns desse tipo e nenhum deles me pareceu tão ávido por autenticidade.
Quem, ao contrário, nunca passou por situação semelhante ao encontrar com um velho amigo que, depois de dez minutos de conversa, pergunta em tom irônico:
- Mas, e vem cá... e aquela vizinha safadinha que você tinha naquela época? Aquela que costumava trocar de roupa com a janela aberta, de propósito, pra quem quisesse ver... tem visto?
Ao que se ouve, como resposta, um seco:
- Eu me casei com ela.
Aí já não adianta mais. A cautela inerente (em teoria) já foi pro saco. Resta o bom senso de se ficar sem graça e calar-se, despedindo-se.
Há, inclusive, os que se seguram até onde conseguem. Foi outro dia que vi um amigo rodeando toco pra perguntar ao companheiro de longas datas acerca de sua ex-namorada:
- ... Gorila, o negócio é o seguinte... tem uma coisa, aí, que tô querendo te perguntar tem tempo... mas, sabe como que é, né... a gente não tem se falado muito mais... a gente tem perdido o contato... sabe... é o seguinte: eu queria saber se você tem notícias...assim, só por curiosidade boba, sabe... mas se você tem se encontrado com aquela sua ex... como é, mesmo, o nome dela?... Aquela altona, muito... simpática... a que quase se casou com você...
- A Nildovânia?
- Isso! A Nildovânia, pois é!
- Ontem eu falei com ela. A gente foi almoçar juntos. Mas essa curiosidade se deve a que?
- Nada! Nada!... Coisa boba, Gorila... (puta merda!)... Mas e vocês... estão juntos de novo? Assim... você ainda... gosta dela... ou não?
- Claro! Ela é muito querida! Mas a gente se trata como amigos, somente. Aliás, ela me disse que tem falado bastante com você, ultimamente, não é?
- Ela falou isso, é, Gorila?... Mas, mas... que mais ela disse?
- Disse que têm se encontrado de duas semanas pra cá. É verdade?
- Bem... é!.. quer dizer...mais ou menos, né... sabe que você é meu amigo e eu não iria fazer nada sem antes saber de você... mas, é... to gostando dela também. Você não se importa, né?
E, depois de todo sofrimento acumulado:
- Vai fundo, Caveira!
A grande questão é que, por mais que a coisa esteja feia, as perguntas sempre aparecem. Elas parecem ser donas de nossos pensamentos. É, sim! Somos, mesmo, escravos das perguntas. E só acontece com a gente, bicho homem. Nunca vi uma hiena, nos documentários da televisão, perguntar ou pedir licença ao “Seu Leão”, pra saber se a carniça já tem dono.
Aí, então, vai uma pergunta a mais:
Que mal há nisso?
Perguntar não arranca pedaços, gente. O que constrange é se o pedaço já foi arrancado. Mas, aí, fazer o quê? Não há mais como colar.

Outra da net

Mais um tirada da internet. Foi publicada no www.ocaixote.com.br . "O Caixote" é uma revista eletrônica que vale a pena dar uma conferida. Agradável, visualmente, e com bastante coisa pra se ler.
O dono desse texto chama-se Fernando Borba e no Caixote há outros contos dele, bem como uma breve biografia.



Julieta
Encontrei a moça meio perdida na praia, olhando para cima as fachadas dos prédios da avenida. Encontrei não foi bem o caso, ela que me encontrou, deu-me um encontrão.
"Desculpe", gaguejou, repondo os óculos. Era uma manhã de carnaval, a praia estava apinhada depois da passagem do bloco 'Segura a Coisa'. Olhou-me como quem tem uma boa idéia e falou: "Sabe onde mora a família Montéquio?"
Era uma pergunta muito fora de propósito. Naquela circunstância, ninguém pergunta a um desconhecido onde mora alguém também desconhecido. Quer dizer, não tão desconhecido, por isso resolvi brincar:
"Montéquio que eu sei é o pessoal do Romeu. Do Romeu de Shakespeare".
Seus olhos brilharam:
"Pois é isso mesmo". Pensei que ela estava entrando na brincadeira e olhei-a melhor. Bem jovem, saia longa, miniblusa fina, sandálias caras, bolsa de couro pendurada no ombro. A pele era alvinha, contrastando com os cabelos negros escorridos ao longo do rosto. Óculos sem aro, de lentes brancas. Até que bonitinha. Muito séria, com um ar preocupado.
"Meu nome é Julieta. Tenho de encontrar os pais do Romeu, pois acho que ele corre perigo."
"Pera lá, Romeu e Julieta? Aqui na praia, e no carnaval? Brincadeira tem hora. Ou será uma troça nova?"
Mas a gata não tinha jeito de quem estava de galhofa. Séria como ela só, continuou:
"Ele está voltando a Verona hoje. Deixei um recado com o Capelão do cemitério, pra dizer que não morri, estou bem, que vinha esperá-lo aqui, mas acontece que Dom Lorenzo teve um ataque cardíaco".
Joguei no lixo a latinha vazia de cerveja e abri outra. A menina era muito convincente, e continuei escutando.
"O veneno que tomei era de mentirinha, mas Romeu não sabe. Vai ficar procurando meu corpo em Verona, vai acabar sendo preso e enforcado. Mas os pais dele são importantes, têm relações na Embaixada, podem interferir. Ah, minha Santa Madonna!"
Achei tudo aquilo um despropósito sem tamanho, mas àquela altura parei de me preocupar com a realidade. "Que lindos olhos azuis", pensei. "E que boquinha gostosa.
"Bem, se você acha que os Montéquio moram por aqui, é só procurar o número deles na lista e ligar. Tenho uma lista e um telefone no meu apartamento, é naquele prédio ali em frente."
Julieta olhou para o outro lado da avenida e aceitou meu convite. Por sorte não ia ter ninguém em casa pelo dia inteiro. Subimos e levei-a para a varanda. Peguei o uísque, enchi dois copos e lhe ofereci um.
"Obrigada. Só tomo Amaretto dell'Orso, e em dias de festa."
Sentamos na varanda. Ela recostou-se e cruzou as mãos no regaço, como uma nobre da Renascença.
"Ô, sinto muito" eu disse. "Quanto a ser dia de festa, hoje é exatamente isso para mim. Conheci você e vou ajudá-la."
Mas Julieta estava apreensiva e queria telefonar. Fui na sala apanhar a lista e o telefone. Enquanto eu bebericava meu uísque, ela folheava o volume e dava alguns telefonemas. Eu embasbacava para suas mãos esguias, seu rosto bonito e sua voz murmurando docemente em italiano.
Uma pombinha branca entrou na varanda, deu voltas e pousou no balde de gelo. Deus me perdoe, mas juro que ela piscou o olho para mim. Depois apareceu um cavalo com arreios dourados, cumprimentou-me com um aceno de cabeça e falou:"Sou Incitatus, Senador romano. Mas meu nome de batismo é Cornélio".
Ri tanto que quase sufoquei com uma golada de uísque.Minha última visão de Julieta foi quando ela levantou da cadeira e andou para a sala.
Quando acordei, o sol tinha sumido e as lâmpadas da orla estavam começando a acender. Uma bruta dor de cabeça me atormentava."E Julieta?" lembrei.
A caminho do banheiro, notei que meu quarto estava uma bagunça. Nas gavetas desarrumadas da cômoda faltavam os cheques, os cartões de crédito, todo o dinheiro e o relógio de ouro que foi do velho. Corri feito um desenganado para o guarda-roupa e procurei em vão a caixinha de metal com os dólares e as jóias de minha mulher.

O Melhor Amigo

- Maninhooo!
- Que foi?
- Cachorro é com “xis” ou com “ceagá”?
- Como é que é? – aproximou-se o irmão da mesa onde sua irmãzinha fazia o dever de casa. Uma redação sobre “o meu melhor amigo”.
- Ih, minha irmã! Eu não sei, não!
Parou por um tempo, olhou o papel de um lado, de outro. Tudo isso em silêncio. Parecia um médico que se mantém absorto na análise de um paciente, sem pronunciar uma só palavra, enquanto o cliente aguarda, ansioso, pela cura proferida pelo doutor. Alguns, ao invés de médico, sentem-se num tribunal e, nesse caso, a cura cede lugar ao veredicto:
- Ah, escreve cão que dá no mesmo! – e foi saindo.
Sua irmãzinha já esboçava um sorriso de agradecimento no rosto, quando foram surpreendidos por um berro do pai que lia o jornal em sua poltrona:
- Volte aqui, moleque!
Viraram-se, de uma só vez, para o pai que já não mais tinha o rosto disfarçado em folhas de manchetes do dia.
- É assim que você ajuda a sua irmã, é? Esse é o exemplo que você quer dar a ela? Preste atenção, menino! Ela pediu ajuda a você porque tinha dúvidas no dever. A dúvida era sobre uma palavra e olha só o que você responde a ela! Que ajuda foi essa? Quer dizer que se ela pedir ajuda a você algum dia, é assim que você vai ajudá-la? Ela é a sua irmã, rapaz! Sua obrigação era sentar-se com ela e, já que nenhum dos dois sabe como se escreve, que procurassem num dicionário. Você está de castigo! Vá para o seu quarto e fique lá até eu mandar você sair.
- Mas, pai...
- Não tem mais nem menos. Vá agora e...
- Júnior... você está exagerando! – manifestou-se a mãe dos garotos.
- O que?! Você vai dar razão a eles agora, é, mulher?
- Não é essa a questão, Júnior. Só não há motivos para esse escarcéu todo. Ele tentou ajudar do jeito dele. E até foi criativa a solução dele. A gente não pode negar isso.
- Criativa, vírgula! Ele tinha era que esclarecer a dúvida dela e, não, tentar sair da forma que ele achou mais conveniente. E não admito que você me contrarie na frente de ninguém! – e curvou-se de uma vez para frente, dando um soco na mesa, derrubando o arranjo de flores e machucando a mão já prejudicada pela partida de vôlei da sexta-feira com os amigos.
- Ai, minha mão!
- Ai, meu arranjo!... – já soluçava a esposa, enquanto tentava acudir as flores, como se a tivessem ferido um filho. – Tá vendo o que você fez, Júnior?! Culpa sua, Júnior! Quem mandou você ser grosso desse jeito, Júnior? Precisa disso?... Hein, Júnior!
- Culpa minha, uma ova! Culpa sua! Da próxima vez você vê se me apoia em alguma coisa. Aquele moleque, em vez de ajudar a irmã, fez o que fez. Não ajudou no que ela queria e você ainda vem dizer que a culpa foi minha?! Paciência tem limite! Ai, minha mão! – a dor estava insuportável o suficiente para diminuir o tom de voz que, até então, ele insistia em sustentar.
- Eu não vou ser complacente com esses seus métodos, Júnior! E deixe eu ver essa mão aí.
- Cuidado, cuidado... ai! Tá doendo muito!
- Calma aí que eu vou buscar um gelo. Deixe sua mão quietinha que eu já volto.
Parece que o espaço da calmaria ainda estava preservado naquela casa. São as águas que se agitam conforme as nuvens ficam mais negras, mas que sempre cedem seu lugar ao sol que é mais forte.
Toca o telefone.
- Alô! – atendeu o Júnior, num tom ríspido.
- Mãe?! Desculpe, mãe! É que eu estou nervoso!
- Ah! Foi seu neto que causou essa confusão toda. Você acredita que a irmã dele pediu ajuda no dever de casa, perguntou se cachorro era com “xis” ou com “ceagá” e ele, por não saber, mandou que ela trocasse a palavra cachorro por cão porque “...dá no mesmo”? Veja se pode uma coisa dessa! E ainda tem apoio da mãe! Deve ter sido do exemplo dela que ele aprendeu a ser assim. Absurdo...
- O que, mãe? A senhora está passando mal?
- Mas, como assim, dor no peito?
- A senhora tomou o remédio?
- Aquele que o médico passou, né, mãe? Ora, qual!
- Mas, como é que eu vou saber? Ele passou foi pra você, mãe!
- Mas, mãe...eu... mãe... calma... escuta ... calma... mãe...eu não estava com a senhora no dia da consulta, mãe! Mas, que coisa!
- Não estava. A senhora não se lembra que foi no dia do conselho, eu deixei a senhora lá e depois fui buscá-la?
- Então, mãe! Foi isso, mesmo.
- Faça o seguinte, mãe... quais foram os remédios que ele passou pra senhora?
- E há quanto tempo a senhora não toma nenhum deles, hein?
- Ah, então é por isso, né? Tomou só no dia da consulta. Isso tem quase um mês, mãe! A senhora não se cuida?
- Calma! Calma! Respire fundo, senão piora. Assim!... Desculpas.
- Faça o seguinte, mãe: tente lembrar-se, mais ou menos, qual era o remédio pra qual problema. Se não lembrar, tome qualquer um. Mal não vai fazer, né, mãe?
- Então!
- Ou, melhor: tome os três. Se não melhorar a senhora liga de novo que a gente vai ao médico, tudo bem?
- Tá bom, então, mãe. Um beijão. E vê se cuida dessa saúde porque já não tem mais idade pra brincar com ela!
- Um beijo, mãe. Tchau.
Nesse instante, totó entrou correndo e latindo pela sala, abanando o rabo para a garotinha que aguardava, sentada, o desfecho daquela história toda. Saíram da sala e foram brincar no quintal.
O garoto ainda esperou a mãe chegar com o gelo para seu pai. Depois que viu que estava tudo sob controle, saiu e foi brincar em seu quarto.
- Quem era ao telefone, Júnior?
- Minha mãe.
- E o que ela queria?
- Nada de mais! Passou mal, mas já está tomando os remédios, direitinho.
- Então, dê aqui essa mão pra eu cuidar.

Terapia de Choque

Havia três anos que eu me privava de qualquer momento de paz em minha vida. Quatro empregos concomitantes e, por vezes, queixava-me do tempo, como se fosse ele o culpado de minha notória incapacidade de lidar com o dia-a-dia. Posso incluir também o noite-a-noite e o madrugada-a-madrugada, pois não raros eram os momentos em que até meu jantar vinha regado a trabalho. Um restaurante situado a duas ruas de meu humilde apartamento sempre fora encontrado vagando nos desejos manifestos de minha esposa. E lá íamos nós ao bendito restaurante. Minha esposa sempre gostou do local. Era perto, portanto, prático; agradável, portanto, passível de prazer; calmo, com música ao vivo guiada por um maestro ao piano, fazendo-me lembrar das noites de lua-de-mel em Paris durante o verão de oitenta e quatro. Pessoas sussurrando em suas mesas com seus amigos, com suas famílias, esposas ou amantes, casais de namorados que, notava-se na grande maioria dos casos, eram pares recentes. Mas quem nunca quis impressionar sua namorada nos primeiros encontros? Desde a idade das pedras isso é de praxe. Parece até filogenético! Se não é com demonstração de coragem como os nossos ancestrais macacos o faziam, era tentando cravar o coração da pretendente com exacerbação de bondade ou uma transparência infinda de companheirismo e compreensão como outros tentavam agir, ao menos no início do relacionamento. Julgo que esta não seja uma tática tão segura assim. A maior prova de minha tese também vem da mais tenra história da humanidade. Lembra-se do que Adão fez por Eva no tal paraíso? Até imagino a cena:
– Adão, vem cá! – em tom desafiador e provocativo – ... se queres mesmo demonstrar teu afeto por mim, então prova dessa maçã proibida por nosso Criador, em sinal de tua admiração, respeito por mim e da minha importância em tua vida.
– Eva, meu amor... fez Deus o mundo em seis dias e, de mim, tirou uma costela para trazer à luz a maior e mais bela de todas as criações. Luz às trevas em que eu vivia Ele trouxe. E o que são seis dias comparados a um único minuto ao teu lado, minha flor? Abro mão de minha eternidade pois cada minuto, cada segundo contigo é eterno e o bastante para a minha existência. Da mesma forma condeno a todos os que virão como fruto do nosso amor, se assim queres. E brindo esta maçã a ti, minha eterna deusa.
Enfim... creio que tenha sido mais ou menos assim. Só depois de perceber que a coisa tinha sido séria é que Eva tentou voltar atrás e dizer que estava arrependida pelo que tinha feito a ele e, em sinal de arrependimento e de uma consciência deveras pesada, iria agir da mesma forma que Adão houvera feito, comendo o outro pedaço da maçã.
Mas isso não tem importância. Da mesma forma que a demonstração de cumplicidade afetiva, demonstrar seus sentimentos com atos de coragem pode ser arriscado. Vai que o sujeito leva uma surra daquelas!
Felizmente, nunca presenciamos nenhuma cena semelhante naquele restaurante, embora estar lá, naquele local, me deixasse um pouco aflito, comumente.
Por ter quatro empregos como empresário, era fácil encontrar clientes, empregados e bancários (principalmente) que me trouxessem à tona todo o clima de trabalho. Cobranças, investimentos, ações, aplicações, novidades do mercado, taxas de juros, over-loop, economia mundial, globalização... Era um terror!
O bife à cavalo que minha mulher pedia lembrava-me a Argentina. Muitos eram meus negócios com a Argentina e sempre tinha de tentar driblar a política adotada por seu comandante. Mais um ponto para o trabalho, que vinha a galope.
O crépe suzette da sobremesa lembrava-me a Suzana, uma ex-empregada de uma das empresas em que eu trabalhava, que havia movido uma ação judicial contra mim, acusando-me de assédio sexual. Quanta dor de cabeça essa mulher me trouxe! No trabalho ninguém mais confiava em mim. Fora do trabalho, idem. O que dizer de minha esposa! Quase nos separamos. Durante quase dois anos meu nome figurava na mídia como uma pessoa inescrupulosa, sem caráter, desprovida de moral. Ao menos, acabou bem essa história. Fui julgado inocente e, com uma semana após o julgamento, muita gente já nem sabia mais quem eu era.
As mesas do restaurante, por vezes, reportavam-me à reunião ocorrida naquele dia.
O cardápio me lembrava uma tabela de índices de investimento, cheia de números, de formas, gráficos ascendentes e descendentes. E ainda havia o dinheiro que iria embora do meu bolso ao final da decisão da aplicação a ser executada.
Não havia uma única coisa naquele lugar que não me fizesse lembrar do trabalho.
Em casa, muitas foram as vezes em que acordei no meio da noite com minha esposa tentando acalmar meus sonhos, ou melhor, pesadelos. Eram as logomarcas das multinacionais que corriam atrás de mim com suas balanças em mãos, a fim de me atacar. De repente um abismo no meio do deserto e lá ia eu, caindo em um buraco que não tinha mais fim, vendo minha vida passando por mim à medida que eu caía. Minha mãe advertindo que sempre havia dito para eu nunca mexer com empresas. Meu pai me batendo. Minha esposa reclamando. Às vezes eu me via sentado em um lugar deserto e, do nada, me surgia o "coisa-ruim", todo de vermelho, com chifres e uma cara que não me era estranha. A única coisa que ele fazia era rir de mim e dizer umas meias-palavras ameaçadoras. Seu sotaque também era familiar. Até hoje não sei bem quem ele me fazia lembrar mas, com toda a certeza, era ele quem mandava naquele inferno e que, a cada dia, tinha mais cara de inferno.
Resolvi um dia que deveria procurar ajuda. Já não suportava mais toda aquela pressão e mal-estar afetando não só a mim, mas àqueles que estavam perto e acabavam sofrendo por tabela.
Recorri ao auxílio médico.
Na sala de espera foram vinte minutos de agonia. Para mim, todo aquele tempo era um dia totalmente perdido. Impossível não me preocupar com os afazeres deixados de lado por conta daquela consulta.
Agonia quando entrei e indignação ao sair do consultório. Apenas três minutos... três... de conversa e o infeliz do médico me encaminha ao psicólogo. Pelo amor de Deus! E eu lá tenho tempo de procurar essas frescuras?, pensei.
"Relutância passiva, pouca mudança e vida inativa", dizia meu pai.
Deixei para lá. Quatro meses e nada de procurar ajuda. Achava um absurdo perder tempo deitado num divã, ou sei lá o que eles utilizam naquilo que chamam de sessão terapêutica. E eu estava sobrevivendo bem até o dia em que tive um ataque de nervos durante a madrugada, em casa. Sonhei que o mundo havia acabado e que eu estava num vazio enegrecido. Era meu. Essa posse, no entanto, não me servia. Eu não tinha chão para pisar, não tinha o que pegar. Nenhuma posição me dava equilíbrio. Não enxergava nada a não ser a escuridão. O som que ouvia era um vento infinito e uníssono, monótono e sem aparência alguma. Caía como um pássaro sem asas e o solo nunca chegava. Tentava me mover e manter-me em uma posição confortável, mas era impossível. Cheiro, só de meu desespero à medida que despencava do céu infinito. Fria aquela queda. Gélida em todos os sentidos e em todas as direções. Meu último movimento foi tentar abraçar-me para, ao menos, tentar diminuir a febre que tomava conta do meu corpo naquele despenhadeiro sem fim. De repente a água. Um estrondo do meu corpo caindo num mar, num oceano sem vida e também medonho. Todo o ar do mundo havia acabado e eu tentava sobreviver com o pouco fôlego que me restava. Foi então que ouvi uma voz tranqüilizante que a cada segundo ficava mais próxima e mais nítida aos meus ouvidos. Ainda tive a inspiração de deixar guiar-me por ela. Aos poucos abri os olhos e percebi minha esposa ao meu lado, tentando trazer-me de volta à consciência. Em meu rosto, sua mão. Em seu rosto, um sorriso preocupado.
Naquele dia percebi a tal "relutância passiva" do meu pai atuando em mim.
Decidi procurar auxílio mais uma vez e a indicação outrora feita pelo médico me vinha à lembrança. Marquei minha primeira sessão terapêutica.
Lá vou eu, caminhando pela rua. Mais um dia de jornada em direção ao centro da cidade.
Quando dei por mim, estava a dois quarteirões além da clínica psicológica na qual deveria ter entrado dez minutos atrás.
Retornei os dois quarteirões e dez minutos depois estava eu na tal clínica, vinte minutos atrasado:
– Bom dia! – dirigindo-me à recepção.
– Bom dia! Posso ajudá-lo? – respondeu a moça, com um sorriso sincero.
– Hoje é minha primeira consulta e estou atrasado vinte minutos...
– Ah! Senhor Abdala, certo?
– Sim. Sou eu. – Tentei, mas não consegui disfarçar minha sem-graceza.
– Por favor! Queira acompanhar-me. O doutor Afrânio está esperando pelo senhor.
Segui-a pelo corredor até a porta do doutor Afrânio. Aguardei a moça anunciar-me e, então, apareceu-me um senhor baixo, de mais ou menos quarenta anos, gordo que, notava-se, matava o tempo de minha espera mastigando e ainda saboreando uma barra de chocolate cuja embalagem encontrava-se sobressaltada numa cesta de lixo. Deu uma última engolida e estendeu-me a mão:
– Como vai? Tudo bem? – Tentou ser simpático. – Queira entrar, por favor!
Se estivesse tudo bem eu não o estaria procurando, claro!, pensei. Mas respondi com simpatia compatível:
– Obrigado! – e acomodei-me em uma poltrona que ele havia apontado.
E assim começou a primeira das várias sessões que mudaram minha vida. A primeira impressão que ficou logo nesse nosso primeiro contato perdurou até o dia seguinte: raiva. Pensei em nunca mais aparecer por lá. Além do chocolate e da falta de sensatez em sua primeira pergunta, durante a sessão ele disse algo que incomodou bastante. Só fui entender o significado daquilo após um dia de reflexão e muita conversa em casa, fatos inusitados o bastante para não passarem desapercebidos.
Assim que falei de meus hábitos diários, desde a alimentação ao sono, passando pelas atividades físicas e trabalho, o infeliz virou-se para mim e soltou o seguinte comentário:
– Mas também, comendo tanta porcaria, dormindo mal, atrofiando o corpo com uma vida sedentária, deixando sua família em segundo plano e você em terceiro, só podia mesmo sentir-se esse lixo! – E gargalhou num si bemol estridente e alto, curvando-se para trás em sua cadeira.
Ô ódio que me deu!

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Há, sim!

Há coisas que se diz,
assim como alguém que se mostra.
Há coisas que o tempo é quem mostra,
assim como um dia gris.

Há coisas que se calam pra sempre;
aquelas que se vão com o vento.
Há muitas ainda inânimes;
escondidas em segredo, ao relento.

Há, ainda, as que eu sei e explico;
ex-ato solto no ar.
Há outras cuja lógica não sei,
nem insisto.
Só sei que há.

Assim Seria... Maria Faria Nascimento

Mariazinha, certa vez, tadinha!, teve uma desilusão enorme, daquelas que derrubam qualquer um. Depois de muito sofrer, prometeu que não iria mais se entregar às dores que se vivem vivendo, simplesmente. Negou todas elas e se forçou a aprender o ofício de uma vida de cabeça erguida. Cresceu, então, olhando pro sol. Só não esperava, tadinha!, que um dia ficasse cega.

Às Vidas

Meu pequeno segredo é saber que tudo que vivi é vivo só na memória. As fotos e quadros que pintei só conseguem sorver uma parcela ínfima do que vi de minha história. É hora de tentar contar o que não consigo, para saber se, vivo, tenho chance de avivar alguém.
E lá vêm... minhas vidas:

Para um menino, que sempre sorriu quando disse tchau, meu primeiro abraço. E um sorriso lúcido que não finda, à mocinha tímida de tão linda que é.
“Mulher, volto logo! Não pense que vou deixá-la tão cedo. E, ainda que toda distância deixe medo no espaço vazio que se forma entre nós, saiba que é passageira essa sensação de frio. Em breve retorno para aquecê-la.”
“Pois vai logo... e volta logo para que não me encontres congelada quando voltares.”
Assim foi e sempre será.
Assim, fui.
Conto quando chegar.

“Mãe, o papai demora dessa vez?”
“Entra e vai dormir. A noite ajuda o tempo a andar mais rápido. Aprende: se queres que algo bom te aconteça logo, de noite pede a Deus pra que descanses muito. É assim que no outro dia vais aproveitar muito mais o que tanto querias.”
... “Sinto falta do papai! Vou pedir a Deus que só me acorde quando ele chegar.”

“Mamãe, também vou pedir a Deus para que eu durma até o pai voltar. Só estou pensando que, se Ele aceitar meu pedido, vai ser um pouco doído o zero na prova que a professora vai dar.”
“Deixa de ser sabichão! Aprende tu, agora, então: sonhos são bons e a gente deve sempre tê-los. Mas não te esqueças de que céu azul só pode ser visto por quem tem os olhos abertos. Abre os teus e vive.”

Se tudo foi assim, não sei. Mas, para mim o foi, e me basta!
Enquanto todo mundo dormia, era eu quem me esforçava para manter os olhos acesos. Qual languidez me consumia! Êta Jesus! Só, mesmo, a Sua luz!

“As crianças já dormiram, sim. E me preocupo mais contigo. Sabes o tamanho do perigo que é viajar a essas horas, sozinho e sem alguém pra conversar.”
“Sei disso. Tu, também, me trazes saudades. Sabes que, por mim, estaria junto. Bem que dava pra deixar isso pra depois. Mas, tem gente que insiste numa coisa e não há quem tire da cabeça.”

E assim eu ia. Tirando saudade e melancolia, meu destino dependia do que me aguardava do outro lado. E este não estava em minhas mãos.
No caminho, parei várias vezes. Em dois dias de estrada fiz parceiros, camaradas, e até uma cigana que jurou que não engana ninguém, e nem cobra por consultas há mais de vinte meses:
- E qual é a lógica dessa sua razão?
- A mim foi dado um dom. Se veio de graça, que eu o use como tal. Coisas assim não se pagam. Nem se pode aceitar um agrado. Alimento-me dos sorrisos de quem me procura e confia.
- Que lhe diz, então, o meu destino?
- Ele está lá. E me aparece sorrindo, não como pilhérias, mas como acalanto.
- Pois, é tudo de que preciso!
- Então vai... saberei se precisares de ajuda. Não sou exatamente como pensas. Mas, não te assustes. Também dependo de você.
Estranho, heim! – pensei. Será que toda cigana tem que atiçar calafrios, também?
- Não te preocupes. Todos estamos ligados. Não disse nada pra deixar-te cabreiro. Vai em paz.
E fui!

Há dois dias que não dás notícia, homem! Há algo de errado, sinto! Minha mãe sempre rezou que acordar em plena madrugada com coração acelerado e peito apertado é sinal de sofrimento de quem se ama. "E, pensar nele, nessa hora, não foi nada confortante."

“Mamãe, sonhei com papai esta noite. Havia um anjo bem lindo, que segurava o papai, sorrindo, e pediu pra eu beijá-lo no rosto.”

“Não entendi o motivo de mamãe ter chorado com seu sonho. Ela está chorando até agora. Será que é algo ruim?”
“Não sei! Será que fiz algum mal ao papai? Juro que se eu pudesse, pediria a Deus pra tirar esse sonho da minha cabeça. Até peço, agora mesmo, pra que eu esqueça. Pra não ver papai sofrer.”
“Acho que sonho é sonho. Não atrapalha. E a gente está é acordado. Não precisa chorar, também.”

“Um bilhete?! Que será?”
“Mulher, sabes que há alguém muito especial precisando de tua ajuda. Confia! E usa todo teu amor por essa pessoa no dia de hoje. Valerá usá-lo assim.”

“Nunca vi a mamãe usar de tanta fé, e por tanto tempo, rezando!”
“Nem eu!”
“Venham comigo, meus filhos. Meu coração me diz que amanhã a gente saberá que valeu.”

“Pois, sim, mulher! Foi tudo melhor do que a gente imaginava. Sinto-me leve! E bom poder chorar sorridente, até por ter certeza que, nessa vida, somos nós os mais felizes do mundo. Foi por sentir teu amor tão presente, que nossa vida verá mais nuvens, estrelas, paixão e nascentes. A ti, meu beijo e um até logo!"
E assim, voltei!

O sorriso do menino companheiro continuava lá.
A timidez da mocinha amada continuava lá.
E o colo e coração belos de quem tanto zelou por mim, também continuava lá, quente, aquecido, como ninho aconchegante de quem tanto quer bem aos seus amores.

“ Este foi o bilhete. Sem assinatura, nem caligrafia conhecida. Quem o fez, será?”
“Um anjo, meu bem! Um anjo!”

E para quê saber quem é quem, nessa vida? Na partida, levo só meu arquivo pessoal. Às vezes, o mais importante não é quem, nem o quê, mas o como. E esta aqui é a minha vida. Devo tudo a ela. Ah, se ela não me deixasse ser o grande manco que sou! De tudo, o mais importante é saber que não se é perfeito e, ainda assim, ter respeito de quem mais me vale. Ela me foi dada; e por inteira. E inteira há de ficar. E se me for partida, encontro-me com o destino, outra vez.

Como Ler Um Poema?

Quantas formas diferentes
há de ser ler um poema?
Se digo que “te amo”
ou que amo você,
quem saberá distinguir
amor fraterno de amor eterno?
Quem libertará as diferenças iminentes?

Se peço para termos calma,
não entenda como um grito
ou ordem ao seu desespero.
Posso, apenas,
como um pretensioso amante,
querer afagar sua alma
ao me entregar por inteiro.

Quando digo: vá com Deus!
É claro que uma despedida se encaixa.
Mas, para sempre?
Por que mandá-la ao léu?
Lamento não possa ver meu sorriso,
cujas letras não desenham num papel.

Se rabisco um não
ou um não
ou um outro não,
quem traduzirá seus sons?

Se arrisco que quero,
que quero
ou que quero!,
como filtrará meus tons?

É que, se posso encantar quem me vê,
se posso enganar quem me lê,
mistério, atenção e beleza
podem ser alguns de meus dons.

E se se apela pro argumento do contexto
para dar forma ao que numa folha se mostra,
um monólogo seria o risco.
Será que assim me esqueceria?
Minha opinião... desconsideraria?

Talvez o maior segredo,
aquele que se pretende,
seja entender que somos dois:
Eu, você... a gente!
Saber que escrevo minha vida,
assim como respeito a sua,
que é só você quem vive;
é só você quem sente!

Sendo assim, diga-me,
como alguém que se rende,
como você nos lê?
Como você nos entende?

Carta Sobre Um Livro

O livro que me deste? Não, ainda não o li. Vou até o meio, mais ou menos, e depois paro por um tempo. Tempo... metade... parecem incompatíveis mas complementares, não é verdade? Sempre me vem a vontade de lê-lo. Mas é preciso retomar o desejo do início, pois simplesmente esqueço. É! O tempo realmente faz isso com a gente, desde o começo. Parece um vício, não é? Parece pão. E água. Quem não precisa? Todos alimentam-se disso. Isso é vida! Vida, então... será um vício?
Por que não o li? Não sei dizer, ao certo. Talvez pelo vício que disse. Talvez por medo, ou por esperança. Medo de saber o final da história, assim como não sei o final da nossa. Pelo que li até agora, o mocinho guerreia inclusive contra ele mesmo. Será um livro a vida nossa? Medo... medo de não chegar ao final dela, a história. A história que me ofereceste e fechei ao chegar a metade, deixando somente a capa aparente.
Esperança? Sim. Por que não esperança? É nela que vislumbro um motivo. Ela também me alimenta. Ainda imagino o dia em que chegarei ao “... e viveram felizes para sempre”. Quem não imagina? E, nela, ainda acendo uma vela para podermos ler, juntos, o livro que me deste.
Por que fugi? Desculpa-me. Também não sei dizer. Trazia o medo comigo também naquele dia. Era agosto. Ou setembro? Se bem me lembro, tu irias e não mais voltarias. Irias para longe. Só ver-te-ia em meus pensamentos que com o tempo me deixam. Um médico disse que, por conta de uma pancada, minhas memórias , aos poucos, esvaiam-se. Mas, que raio de pancada foi essa de que não me lembro?
Por que não liguei? É. Eu sei. Não liguei, mesmo. Até hoje vivo arrependimentos. Li uma parte do livro em que o herói, ou melhor, o protagonista, perdeu um amor que nunca viu. Depois dizem do que só o amor constrói. Deve ele estar construindo até hoje uma escada até as nuvens para poder alcançá-lo. Isso deve torná-lo um herói, sem dúvidas. Herói manco! Manco das pernas, pois relutou em compartilhar seus sentimentos. E, agora, manco do coração, pois da alma do nobre: se não a usa, fica pobre. É isso que o tempo espreita. Neutro, mas implacável. Acredito que seja essa pobreza a mesma que me faz menos vívido. Desculpa-me se não liguei para...
O chá? Tu ainda te lembras disso? Achei que fosses esquecer. Sei que foste tu quem convidaste, mas só Deus sabe o quanto meus dedos tremiam nas teclas do telefone. Não paguei para ver e agora pago pelo que não vi... e ainda não vejo. Desejos transcendentes que nunca se alcançam!
Por quanto tempo esperaste junto ao telefone? Sem falsa modéstia mas, com pesares, imagino que alguns. Algumas também foram as vezes em que tentei, juro! Mas não soube ousar de um desejo que era puro. E, depois, a que brindaríamos aquele chá? A tua partida? Não. Não seria justo comigo. Não seria justo conosco. Talvez a tua felicidade. Isso, sim, talvez fosse uma página bonita dessa história. Mas, se me permites, seria esse teu final feliz? Perdoa-me se não liguei para...
Teu novo número? É verdade. Mais uma vez estás certa. Nem ao menos te procurei para saber teu novo telefone. Geralmente, também usa-se o telefone para matar as saudades; para saber como andam os queridos; e os não-queridos (por quê não?). O que acontece é que eu não queria matar nada a teu respeito, acho. Saudades. Que fossem elas um simples estímulo para poder procurar-te e suprir-me de teus olhares e sons. E, hoje, nem estes os tenho. Ainda me faltariam tato, olfato e sabor... Sandice pensar nisso tudo depois do que fiz. Do que deixei de fazer, melhor dizendo. Deus nunca oferece uma cruz de algodão a um gigante, nem de trevas a um grande amor. Devo estar carregando a minha de bom grado.
Perdão se não liguei, ... teu nome? Claro que me lembro! Nunca esqueceria! Mas, não me sinto à vontade em dizê-lo nessa carta. Não me deste e eu não soube usar do tempo para pedir-te a permissão de pronunciá-lo ou reproduzi-lo.
E é esta a razão pela qual estou escrevendo. Não sei onde estás. Nem sei se estás! Quem sabe os caminhos que esta carta irá correr até chegar a ti... se é que vai chegar! Não sei ainda se, sequer, vou mandá-la a algum canto. Porém, se resolver jogá-la ao céu e um dia ela pousar em teu colo, saberás quem eu sou (quero crer) e espero que me procures. Que me perdoes ou, senão, que digas que posso terminar o livro que me deste sem preocupar-me com um final feliz. Que eu não tenha medo de passar da metade. Que a vela que acendo em minhas esperanças não seja guardada e que a use da forma que bem entender. Que ela se desgaste até o dia em que não mais existir. Que o vício seja ler o livro inteiro, sozinho, e, não mais, somente a metade dele.
Meu telefone? Continua o mesmo, embora a cada dia, a cada minuto, corra-me o risco de trocá-lo.
Perdoa-me se não liguei para dizer que não iria ao chá a que me convidaste, pois não veria nele um motivo de alegria ou esperança de estar ao teu lado nos dias que o seguissem. Desculpa-me se não liguei para dizer que de todas as histórias que li, essa que me deste era a mais bonita e que não gostaria de chegar ao final dela, fechar o livro e enfeitá-la em minha estante, ao lado de outras que já nem lembro mais do enredo.

A Folha Que Voa

Quando meu filho nasceu, toda alegria e mudança só podiam fazer com que minha vida fosse dividida por dois. E era importante o zelo por duas vidas em uma só. Metade era minha, metade era dele. Éramos nós, enfim!
Nem todo mundo pensa em como é ver um trisco de gente crescer, aprender a falar, andar... E, ainda, assim, parece que o mundo é grande demais pra se saber sobre todos os seus mistérios.
Acostumado com a cidade, construções, máquinas que parecem vivas, um dia resolvemos passear na fazenda de meu avô. Fora essa a primeira vez que ele vira tanto verde, tanto lugar pra correr, sol amarelão (como ele dissera), céu azulão (este, eu que falei), curral cheio e vento, em vez de carros e rock.
Foi pela manhã, debruçado sobre a janela que dava pro jardim, que me gritou com tom surpreso. Acudi, prontamente. E, com o indicador apontando pra fora da janela, solfejou baixinho, quase que como sussurro:
- Olha lá, pai! Uma folha voando.
Um tanto surpreso, também me fiz cochichando e me agachei:
- Onde, filho? Não vejo uma folha voando.
- Ali! Perto da flor amarela da vovó.
- Filho, continuo não vendo a folha.
- É que agora ela está quietinha, descansando em cima da flor. Mas ela vai voar de novo.
Fiquei quieto, esperando pra ver até onde iria essa estória de folha que voa. Pensei que pudesse ter caído alguma folha da laranjeira ali perto.
- Continuo sem ver a folha. Fala pra mim que cor era ela.
- Branca, pai.
Fiquei desarmado. Folha branca não podia ser a da laranjeira. Aliás, não conheço folha branca de árvore alguma. Não! Não deve existir – pensei. Deve ser imaginação de menino.
Foi, então, que vi a folha branca se mexer.
- Viu, pai? Ali, tá voando de novo.
- É verdade. Olha, lá! Uma folha voando.
Foi a primeira vez que vi uma folha branca voar. Mas era verdade. Não era invenção dele. Voava! E não era folha caindo, normalmente. Ela se movia de um lado pro outro; subia; descia. E passeava por entre as flores amarelas, pousava, voltava a voar por entre outras flores vermelhas, rosas... Em toda minha vida, foi a primeira folha branca que vi voar.
E ficamos parados, em silêncio, apreciando o vôo por alguns segundos, até que ela sumiu no horizonte.
Como toda criança urbanizada, virou-se seriamente pra mim e disse:
- Pai, a gente tem que prometer que não vai falar isso com ninguém. Acho que podem falar que a gente é meio doido – e sorriu, no final.
Falei com ele pra não se preocupar, que não havia nada de errado naquilo, mas jurei segredo nosso.
Foi nossa primeira folha branca voadora.
Mais tarde, quem sabe ela se transforme, enfim, em borboleta.

Para um amigo

Bem, um tempo fora e, só agora, às atividades "blogueiras". O primeiro do ano, de boas energias aos que guardo com carinho no coração.


Para um amigo

Sabe, amigo... quando um ano chega ao fim, são comuns as retrospectivas (aquelas que passam na televisão todos os anos com algumas alegrias, aquelas mais introspectivas e íntimas que só nós sabemos delas, aquelas entre amigos que rendem boas gargalhadas, aquelas alheias que nunca saberemos delas); são comuns as avaliações, os balanços; são comuns, ainda, as propostas de mudanças, as metas (e sempre torcemos, durante todo o ano para que todas elas fossem, a cada dia, renovadas por outras ainda mais engrandecedoras).
Quando chega o fim do ano, é sinal de que a Terra deu uma volta completa ao redor do sol. E um novo ciclo dá início. É como aquela ave mítica. Aquela mais bela chamada Fênix que, ao final de sua vida faz um ninho, expõe-se ao sol e, sob ele, deixa-se virar cinza para que renasça, das cinzas, ainda mais bela e renovada, com as cores mais vivas e enaltecidas. É como Jesus que, sob o mesmo sol da Fênix, permitiu-se ser tocado por uma força maior, Divina, renascendo dias depois com espírito iluminado.
O mais interessante, amigo, é que a cada ciclo que se inicia, seja ele o da Fênix, seja aquele vivido por Jesus, seja o ciclo do calendário anual vivenciado por nós, não significa uma interrupção, uma perda, mas uma continuidade. Tudo o que passou não se perde, é acrescido. Tudo vivido não é perdido, mas amadurecido. Tudo se completa. É como a Terra obedecendo e exaltando suas estações. Os outonos cedem suas cinzas para que as primaveras também possam se manifestar. Quem sabe o verão exista só pra que a gente possa usar nossos cobertores no inverno e curtir um “friozinho gostoso”, uma lareira, um bom vinho. Quem sabe?
E tudo isso sempre é lembrado e serve de preparação para o próximo ano:
No próximo ano eu serei mais forte;
No próximo ano as coisas serão melhores;
No próximo ano vou conseguir novas conquistas.
Tomara que no próximo ano a gente se lembre do que aprendemos nesse que se vai. Que a gente se lembre das coisas boas; que as levemos conosco; e que as possamos dividir com outros; que haja novas conquistas e metas; que haja muita gargalhada e introspecção. Plagiando um “grande amigo” nosso chamado Chico, acerca da vida: “... ei-la e eis-me. Nós e os outros, ao mesmo tempo.” E assim somos: nós e os outros. Por isso dividimos. Por isso ensinamos e aprendemos.
Sei que nos próximos anos eu me vou lembrar sempre de agradecer a Deus por nos ter cruzado os caminhos nesse ano que se vai.
E que todas as esperanças nos novos ciclos, nas novas primaveras e outonos nos sejam dadas e vividas como o despertar de uma nova Fênix exposta ao sol, pelos próximos anos!