quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

A Arte em Preto e Branco

Diz-se da arte como uma paixão. Diz-se dela como um sentimento; como algo que fuja à razão. “A arte só é arte quando é sentida” ou como diria um mestre da arte escrita: “De todas as coisas humanas a única que tem seu fim em si mesma é a arte”.
Admiro-me, por vezes, quando assisto a uma crítica relacionada a qualquer espécie de arte. Parece-me que se foge um pouco (para ser ameno) do contexto visceral e veste-se a máscara da testa franzida e do olhar compenetrado, austero e sóbrio (comumente sombrio).
Pois...
Foi com uma figura dessas que adentrei o Museu de Arte de Vaneio. Ela uma figura séria, formal e acolchetada na “ciência da arte” dos pés à cabeça, de corpo e alma, embora esta última esteja em segundo plano quase sempre na mente dessa minha amiga:
- Note os detalhes da fachada. Muito bem planejada! Parece quase que uma transição do Barroco para o Iluminismo... – não me lembro exatamente quais desses períodos da História ela citou. A mim tudo parecia técnico demais. - ... Bravo! Magnífico!
Eu, o oposto, aquela figura informal, curioso assumido de jeans e camiseta branca fui me aproximando e à medida que subia as escadarias do museu, a cada degrau, mais me vinha a imagem de castelos medievais com grandes cavaleiros e brasões dourados, representantes de cada reino de todas as partes do mundo, reis e rainhas e a corte bailando em seus salões sem fim ao som dos minuetos. Fazia bem aquela sensação!
Enquanto minha amiga não deixava escapar o mínimo detalhe com uma teoria e um profundo conhecimento racional sobre o chão, teto, paredes, ornamentos, cores, vasos, brilhos, formas... eu apenas me preocupava desintencionalmente em reparar aquela casa como um todo (coisa de leigo). Chamo aquele lugar de casa por ser dessa forma, mesmo, que o via e vivia. “Um aconchego aconchegante”, como diria minha sobrinha sempre que ia passar férias na casa de praia da família.
Enfim, começamos nossa via crucis.
Não me lembro muito bem dos comentários de minha amiga. Eu me punha absorto demais no vislumbre de cada obra. Porém, lembro-me perfeitamente das horas em que ela expressava alguma opinião movida pelo sentimento puro. Comecei a notar que todas essas manifestações emotivas que ela deixava escapar eram sempre advindas de fora dela, uma força exterior a ela, como num senso comum. Mas, parece-me que ela percebera tal mecanismo. Explico-me melhor com uma memória que me ocorreu quando admirávamos o último quadro da exposição.
A idéia do evento era contar a história da arte através de pinturas que representassem cada período da história do homem, enquanto artista expresso e assumido. A última tela, no entanto, é que me fez confundir a minha história com toda aquela apresentada e idealizada pelos organizadores da exposição.
Era uma espécie de mosaico. Com certeza representava um desses movimentos artísticos, mas não sei dizer qual era. A tela só possuía variações de branco e preto. Cinzas claros, cinzas escuros, brancos encardidos... negros e brancos, dos mais claros e ofuscantes aos mais turvos e mortos. Havia formas redondas, quadradas, retangulares, mas que se juntavam em meio àquele pedaço de pano e constituíam outras formas sem nomes e algumas que lembravam sombras, vultos ou nuvens que, como quando criança, faziam-se por assemelhar a algum bicho. E foi uma nuvenzinha dessa, no quadro, que me fez lembrar um dia, quando criança, sentado à sombra do salgueiro chorão. Eu passava as férias na casa de minha tia e o único lugar que me deixava viajar em meus joguinhos, quase oníricos, infantis era exatamente sob a sombra do salgueiro chorão. Era, de fato, aconchegante. Ali eu criava meu mundo e minhas estórias com os animaizinhos que as nuvens desenhavam para mim lá em cima, no céu. A última figura que as nuvens fizeram nesse dia, que eu me lembre, foi um bebê. Minhas vistas o acompanharam até que fosse ficando menor... e se distanciava... e foi diminuindo... diminuindo... diminuindo...
Despertei num outro lugar. Um descampado enorme com um gramado que mais parecia um tapete real. Continuava sendo o quintal da casa de minha tia, mas era muito maior do que eu percebera, até então. E foi olhando pra baixo, ao meu lado, que notei uma árvore que ainda começava a brotar do chão. Era o salgueiro chorão, ainda nascendo; brotando da terra onde se ocultara durante algum tempo. Lembro-me de ter deitado sobre a grama daquele novo quintal e de ficar admirando de perto, bem de perto, o salgueiro que começava a crescer do chão. Como uma criança que pela primeira vez abre os olhos e se depara com um mundo até então nunca visto, dei-me conta de que não havia cor ao meu redor. Era um sonho em preto e branco. Eu também era parte dessa mistura e a única coisa que tinha cor era o salgueiro que passava da sua infância para sua adolescência num ritmo acelerado, mais acelerado que o comum. À medida que ele crescia e, agora, começava a conseguir produzir sombra e proteção a quem nele se abrigava, algumas cores começaram a nascer. Logo o gramado incorporava-se de verde. O mesmo verde das folhas do salgueiro. A terra tingia-se do mesmo tom marrom do tronco do chorão que, nem de longe, transparecia qualquer sinal de choro ou de tristeza. Tudo que se aproximava dele parecia ganhar mais vida. E tudo que tinha vida se aproximava dele. Ninhos, sons, cores, formas sem nome, luzes, vidas... até que tudo ao nosso redor havia sido tomado da energia liberada pelo salgueiro chorão. Deitei e me apoiei em sua base, protegido em sua sombra, e uma folha que se precipitara de um de seus galhos começara a me incomodar o rosto. Foi então que despertei sob a sombra do salgueiro, com Rex, o cachorro de meus tios (e meu grande companheiro), lambendo meu rosto, avisando-me que o almoço estava servido.
E, exatamente nesse instante percebi, no museu, que minha amiga estava balbuciando algo em meu ouvido. Só me recordo do final da frase que ela disse:
- ... você não concorda?
- Sim... claro! Estou acordado! – disse eu, ainda sob efeito onírico.
Ela ainda virou-se para mim com um olhar sobressaltado, mas preferiu não dizer nada. Voltou-se para frente, deu mais uma olhada na tela, suspirou e proferiu em baixo tom:
- Gostaria de voltar aqui amanhã, novamente. Você voltaria comigo?
Um mês depois ela ganhava seu primeiro prêmio jornalístico e eu, pela primeira vez em minha vida, freqüentava aulas de História da Arte.

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