sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

De Sapos e Belezas

Nunca vi em reino algum
Bandeira que não se hasteie;
Nem ponte que não se eleve
Ou taberna que não sirva rum.

Nunca vi rei se fazendo de bobo,
Embora, muitos, só as vestes distinga.
Nunca vi herói que não se vista de ouro,
Nem bobo que não tenha língua.

Por incrível que pareça,
Toda bruxa é, de fato, desconcertante.
Todo mercador é bom de papo.
Mas, princesa que vira sapo?...

Ó, musa instigante...
Igual a ela, nunca vi, nem consigo conceber. Nem sei como terminar um poema por aquela que, de longe, só me diz tranqüilidades e sorrisos, em pensamento. De perto, bem... foi enquanto partia daqui, rumo ao reino de meu amigo Ferdinand. Foi um desvio de caminho que me fez aprumar a montaria, em fuga de uma tempestade que despontava no horizonte. Toda estrada é só um guia. Não há como dizer que ela seja o destino de alguém, pois ela não obriga. No entanto, ela se insinua. Sugere e induz a uma direção. Comumente, seduz. E, lá atrás, imóvel e sorridente, vi pegadas e paisagens se despedindo, acenando um “até breve”. Lá na frente o próximo passo, a próxima vista, sempre rumo ao norte. Fui seduzido mais uma vez. No entanto, o destino me parecia muito mais sorrateiro do que até então eu poderia prever. As sentinelas, pela primeira vez, mantiveram-se imóveis. À exceção das crianças e mercadores, ninguém mais notou minha chegada ao lugar estranho. Nem me barraram à entrada da cidadela! Não me cobraram pedágios! Não exigiram, de mim, deixar as armas confiscadas até que me fosse embora! Talvez eu já houvesse passado ali e todos me conhecessem. Era essa a impressão, mas posso jurar que não conhecia o tal lugar. Não me propuseram brandir espadas em qualquer momento. E eu me adentrei sem qualquer tipo de incômodo, até onde quis.
Resolvi parar em uma taberna. Era hora de me alimentar, aquecer o corpo febril e trocar as roupas encharcadas de chuva. Sentei a uma mesa, lá no canto, enquanto ouvia a música alegre e esperava pelo bom moço trazer rum e comida. Bebi, bebi e comi. Mas a febre teimava e as danças e risos não amenizavam o efeito do frio. Bebi um tanto mais e me retirei aos aposentos.
Daí, só me lembro de um coaxar junto ao meu ouvido.
Não era abrir os olhos que me faria mais descansado. Porém, não eram os olhos fechados que trariam maior sossego. Vi o sapo me olhando, juro, aconchegado em cima de um baú de madeira que havia ao lado esquerdo da cama. Foi por puro reflexo que resmunguei:
- Que você quer aqui, sapo? Deixe-me dormir em paz.
Mas, ouvi de volta:
- Sou rã, não sapo.
Assustei-me com a voz. Era sonho, claro!
- Como assim?
- Sou rã. Desculpe-me pela abordagem, mas sigo-o desde que adentrou a cidadela.
- Por que eu?
- Sei quem é Vossa Majestade. Encontramo-nos, ao acaso, durante a primavera, no torneio. Muito me preza saber que Vossa Majestade é hábil com armadura. Mas, parece-me que os galanteios em trajes mais leves não demonstram habilidade tão fina nos reinos de lá.
Delírio pela febre, havia de ser; cônscio, no entanto. Era ela, com toda certeza! Durante o baile do torneio, não consegui deixar de segui-la com o olhar. Havia muitas pessoas, muitos nobres e, de todo o salão, foram os olhos dela que me cegaram. Hei de assumir que a reciprocidade existiu, embora essa certeza seja a que me aponte a inabilidade a qual ela se referiu.
- Mas, então, é você a nobre pela qual me apaixonei e que sumiu sem mais deixar qualquer sinal? Aliás, nobre? Nesse pedaço de terra plebeu?
- Pelo que me aparenta, não sou a única a rondar por estradas menos nobres. Quanto à minha condição real, não me reconheço mais como princesa, é bem verdade. Esse é o Reino de meu pai.
- Mas, não faz sentido! Desculpe-me, mas toda princesa sabe de sua condição e não se perde o título. Se esse é o Reino de seu pai, por lógica, também se torna seu.
- E como posso assumir tal responsabilidade se me transformei em uma figura repugnante? Talvez a honradez em negar esse prestígio seja meu único sentimento nobre.
- Já vi outros amigos virarem sapo. O próprio Ferdinand casou-se com Louise nessa condição. Era ele o sapo, e ela seu antídoto. Por curiosidade, também pedi um feitiço e, por um dia, pude saber o que é ser sapo. Mas, nem mesmo nas histórias que se contam, as princesas são empenhadas em tamanha crueldade. Qual a prosa dessa sua condição?
- Um feiticeiro chamado Fíar resolveu que, pela falta de coragem de meu honroso pai em conquistar novas terras, sua maior conquista, eu, seria transmutada em rã, por todas as noites chuvosas que ilham nosso Reino. Sombrio também traduz o semblante de meu pobre pai. De que adiantam vestes nobres se o espírito não consegue vender um sorriso, sequer?
- Pois, sendo assim, ainda há dias em que o feitiço não surte efeito, certo? Só toma essa forma em dias de chuva...
- Não sei se notou, mas a nuvem que toma a cidade é constante. É acima dela que habita o feiticeiro. Além de cruel, invejoso. Merlin já se pronunciou em ataque ao plágio, mas, logo depois, desistiu do intento, julgando haver maiores importâncias em sua vida do que os caprichos de um mago menor.
- Diga-me: existe remédio para a mágica? Todos sabem que sempre há uma poção para todo feitiço. Não seria justo que, além de todas as estranhezas dessa estória, fosse essa desgraça mais uma exceção ao seu caso.
- Nem todo crime é perfeito, como bem sabe. E nunca há de ser. A julgar pela falta de coragem de meu pai, Fíar nunca ousou pensar que algum cavalheiro ou príncipe se interessasse por mim. Não haveria atrativo algum em se querer casar com a filha do Rei de cá. Amor é o antídoto.
- Um beijo, então?
- Não! Amor!
- Há algo nisso que justifique você ter me seguido desde que cheguei aqui?
- Desde o baile, é o sentimento que nutro por Vossa Majestade.
- Por noites seguidas, também estive em sonhos, reinos, jardins, cidades à sua procura. Nunca abandonei esse desejo. Ironia pensar que não fui eu, mas você quem me encontrou. Deite-se aqui e proteja-se do frio. A feiúra que em mim habitava até hoje, há de se transformar ao amanhecer. Vejo suas palavras mais nobres que a aparência que se me mostra. Há de ser sol e estrelas amanhã.
Seu semblante resplandecente fundiu-se com o sol dourado que adentrava a janela pela manhã.
De todas as constelações que vimos, ainda hoje contemplamos uma a uma. É esse nosso brilho.
Essa é nossa história e aproveito sua distância para ocupar-me ainda mais dela em meus pensamentos. Hoje existem três reinos, para nós: o dela, onde se encontra agora muito feliz, após o banimento do feiticeiro e da liberdade heróica de seu pai; o meu, aqui, ansioso por seu retorno daqui a duas luas; e o nosso, que não nos abandona, onde quer que estejamos.
Ocorre-me uma inspiração maior, nesse momento, quanto ao poema que iniciei.
Suprimo a última estrofe e finalizo assim:

Por incrível que me pareça,
Se o amor que nunca chegou
Ora se mostra como fato,
Que mal há, se já fui sapo?

Nenhum comentário: