Havia três anos que eu me privava de qualquer momento de paz em minha vida. Quatro empregos concomitantes e, por vezes, queixava-me do tempo, como se fosse ele o culpado de minha notória incapacidade de lidar com o dia-a-dia. Posso incluir também o noite-a-noite e o madrugada-a-madrugada, pois não raros eram os momentos em que até meu jantar vinha regado a trabalho. Um restaurante situado a duas ruas de meu humilde apartamento sempre fora encontrado vagando nos desejos manifestos de minha esposa. E lá íamos nós ao bendito restaurante. Minha esposa sempre gostou do local. Era perto, portanto, prático; agradável, portanto, passível de prazer; calmo, com música ao vivo guiada por um maestro ao piano, fazendo-me lembrar das noites de lua-de-mel em Paris durante o verão de oitenta e quatro. Pessoas sussurrando em suas mesas com seus amigos, com suas famílias, esposas ou amantes, casais de namorados que, notava-se na grande maioria dos casos, eram pares recentes. Mas quem nunca quis impressionar sua namorada nos primeiros encontros? Desde a idade das pedras isso é de praxe. Parece até filogenético! Se não é com demonstração de coragem como os nossos ancestrais macacos o faziam, era tentando cravar o coração da pretendente com exacerbação de bondade ou uma transparência infinda de companheirismo e compreensão como outros tentavam agir, ao menos no início do relacionamento. Julgo que esta não seja uma tática tão segura assim. A maior prova de minha tese também vem da mais tenra história da humanidade. Lembra-se do que Adão fez por Eva no tal paraíso? Até imagino a cena:
– Adão, vem cá! – em tom desafiador e provocativo – ... se queres mesmo demonstrar teu afeto por mim, então prova dessa maçã proibida por nosso Criador, em sinal de tua admiração, respeito por mim e da minha importância em tua vida.
– Eva, meu amor... fez Deus o mundo em seis dias e, de mim, tirou uma costela para trazer à luz a maior e mais bela de todas as criações. Luz às trevas em que eu vivia Ele trouxe. E o que são seis dias comparados a um único minuto ao teu lado, minha flor? Abro mão de minha eternidade pois cada minuto, cada segundo contigo é eterno e o bastante para a minha existência. Da mesma forma condeno a todos os que virão como fruto do nosso amor, se assim queres. E brindo esta maçã a ti, minha eterna deusa.
Enfim... creio que tenha sido mais ou menos assim. Só depois de perceber que a coisa tinha sido séria é que Eva tentou voltar atrás e dizer que estava arrependida pelo que tinha feito a ele e, em sinal de arrependimento e de uma consciência deveras pesada, iria agir da mesma forma que Adão houvera feito, comendo o outro pedaço da maçã.
Mas isso não tem importância. Da mesma forma que a demonstração de cumplicidade afetiva, demonstrar seus sentimentos com atos de coragem pode ser arriscado. Vai que o sujeito leva uma surra daquelas!
Felizmente, nunca presenciamos nenhuma cena semelhante naquele restaurante, embora estar lá, naquele local, me deixasse um pouco aflito, comumente.
Por ter quatro empregos como empresário, era fácil encontrar clientes, empregados e bancários (principalmente) que me trouxessem à tona todo o clima de trabalho. Cobranças, investimentos, ações, aplicações, novidades do mercado, taxas de juros, over-loop, economia mundial, globalização... Era um terror!
O bife à cavalo que minha mulher pedia lembrava-me a Argentina. Muitos eram meus negócios com a Argentina e sempre tinha de tentar driblar a política adotada por seu comandante. Mais um ponto para o trabalho, que vinha a galope.
O crépe suzette da sobremesa lembrava-me a Suzana, uma ex-empregada de uma das empresas em que eu trabalhava, que havia movido uma ação judicial contra mim, acusando-me de assédio sexual. Quanta dor de cabeça essa mulher me trouxe! No trabalho ninguém mais confiava em mim. Fora do trabalho, idem. O que dizer de minha esposa! Quase nos separamos. Durante quase dois anos meu nome figurava na mídia como uma pessoa inescrupulosa, sem caráter, desprovida de moral. Ao menos, acabou bem essa história. Fui julgado inocente e, com uma semana após o julgamento, muita gente já nem sabia mais quem eu era.
As mesas do restaurante, por vezes, reportavam-me à reunião ocorrida naquele dia.
O cardápio me lembrava uma tabela de índices de investimento, cheia de números, de formas, gráficos ascendentes e descendentes. E ainda havia o dinheiro que iria embora do meu bolso ao final da decisão da aplicação a ser executada.
Não havia uma única coisa naquele lugar que não me fizesse lembrar do trabalho.
Em casa, muitas foram as vezes em que acordei no meio da noite com minha esposa tentando acalmar meus sonhos, ou melhor, pesadelos. Eram as logomarcas das multinacionais que corriam atrás de mim com suas balanças em mãos, a fim de me atacar. De repente um abismo no meio do deserto e lá ia eu, caindo em um buraco que não tinha mais fim, vendo minha vida passando por mim à medida que eu caía. Minha mãe advertindo que sempre havia dito para eu nunca mexer com empresas. Meu pai me batendo. Minha esposa reclamando. Às vezes eu me via sentado em um lugar deserto e, do nada, me surgia o "coisa-ruim", todo de vermelho, com chifres e uma cara que não me era estranha. A única coisa que ele fazia era rir de mim e dizer umas meias-palavras ameaçadoras. Seu sotaque também era familiar. Até hoje não sei bem quem ele me fazia lembrar mas, com toda a certeza, era ele quem mandava naquele inferno e que, a cada dia, tinha mais cara de inferno.
Resolvi um dia que deveria procurar ajuda. Já não suportava mais toda aquela pressão e mal-estar afetando não só a mim, mas àqueles que estavam perto e acabavam sofrendo por tabela.
Recorri ao auxílio médico.
Na sala de espera foram vinte minutos de agonia. Para mim, todo aquele tempo era um dia totalmente perdido. Impossível não me preocupar com os afazeres deixados de lado por conta daquela consulta.
Agonia quando entrei e indignação ao sair do consultório. Apenas três minutos... três... de conversa e o infeliz do médico me encaminha ao psicólogo. Pelo amor de Deus! E eu lá tenho tempo de procurar essas frescuras?, pensei.
"Relutância passiva, pouca mudança e vida inativa", dizia meu pai.
Deixei para lá. Quatro meses e nada de procurar ajuda. Achava um absurdo perder tempo deitado num divã, ou sei lá o que eles utilizam naquilo que chamam de sessão terapêutica. E eu estava sobrevivendo bem até o dia em que tive um ataque de nervos durante a madrugada, em casa. Sonhei que o mundo havia acabado e que eu estava num vazio enegrecido. Era meu. Essa posse, no entanto, não me servia. Eu não tinha chão para pisar, não tinha o que pegar. Nenhuma posição me dava equilíbrio. Não enxergava nada a não ser a escuridão. O som que ouvia era um vento infinito e uníssono, monótono e sem aparência alguma. Caía como um pássaro sem asas e o solo nunca chegava. Tentava me mover e manter-me em uma posição confortável, mas era impossível. Cheiro, só de meu desespero à medida que despencava do céu infinito. Fria aquela queda. Gélida em todos os sentidos e em todas as direções. Meu último movimento foi tentar abraçar-me para, ao menos, tentar diminuir a febre que tomava conta do meu corpo naquele despenhadeiro sem fim. De repente a água. Um estrondo do meu corpo caindo num mar, num oceano sem vida e também medonho. Todo o ar do mundo havia acabado e eu tentava sobreviver com o pouco fôlego que me restava. Foi então que ouvi uma voz tranqüilizante que a cada segundo ficava mais próxima e mais nítida aos meus ouvidos. Ainda tive a inspiração de deixar guiar-me por ela. Aos poucos abri os olhos e percebi minha esposa ao meu lado, tentando trazer-me de volta à consciência. Em meu rosto, sua mão. Em seu rosto, um sorriso preocupado.
Naquele dia percebi a tal "relutância passiva" do meu pai atuando em mim.
Decidi procurar auxílio mais uma vez e a indicação outrora feita pelo médico me vinha à lembrança. Marquei minha primeira sessão terapêutica.
Lá vou eu, caminhando pela rua. Mais um dia de jornada em direção ao centro da cidade.
Quando dei por mim, estava a dois quarteirões além da clínica psicológica na qual deveria ter entrado dez minutos atrás.
Retornei os dois quarteirões e dez minutos depois estava eu na tal clínica, vinte minutos atrasado:
– Bom dia! – dirigindo-me à recepção.
– Bom dia! Posso ajudá-lo? – respondeu a moça, com um sorriso sincero.
– Hoje é minha primeira consulta e estou atrasado vinte minutos...
– Ah! Senhor Abdala, certo?
– Sim. Sou eu. – Tentei, mas não consegui disfarçar minha sem-graceza.
– Por favor! Queira acompanhar-me. O doutor Afrânio está esperando pelo senhor.
Segui-a pelo corredor até a porta do doutor Afrânio. Aguardei a moça anunciar-me e, então, apareceu-me um senhor baixo, de mais ou menos quarenta anos, gordo que, notava-se, matava o tempo de minha espera mastigando e ainda saboreando uma barra de chocolate cuja embalagem encontrava-se sobressaltada numa cesta de lixo. Deu uma última engolida e estendeu-me a mão:
– Como vai? Tudo bem? – Tentou ser simpático. – Queira entrar, por favor!
Se estivesse tudo bem eu não o estaria procurando, claro!, pensei. Mas respondi com simpatia compatível:
– Obrigado! – e acomodei-me em uma poltrona que ele havia apontado.
E assim começou a primeira das várias sessões que mudaram minha vida. A primeira impressão que ficou logo nesse nosso primeiro contato perdurou até o dia seguinte: raiva. Pensei em nunca mais aparecer por lá. Além do chocolate e da falta de sensatez em sua primeira pergunta, durante a sessão ele disse algo que incomodou bastante. Só fui entender o significado daquilo após um dia de reflexão e muita conversa em casa, fatos inusitados o bastante para não passarem desapercebidos.
Assim que falei de meus hábitos diários, desde a alimentação ao sono, passando pelas atividades físicas e trabalho, o infeliz virou-se para mim e soltou o seguinte comentário:
– Mas também, comendo tanta porcaria, dormindo mal, atrofiando o corpo com uma vida sedentária, deixando sua família em segundo plano e você em terceiro, só podia mesmo sentir-se esse lixo! – E gargalhou num si bemol estridente e alto, curvando-se para trás em sua cadeira.
Ô ódio que me deu!