segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

De Chocalhos e Caixinhas de Presente

Pegaram o aviãozinho, desmontaram e puseram dentro da caixa. A torre de rádio foi posta por debaixo dos panos que cobriam a televisão quatorze polegadas. O carrinho vermelho que custou os olhos da cara, mas foi o melhor presente do Natal passado, colocaram-no detrás do portão da casinha velha, aquela com a pintura fosca e empalidecida. Lógico que trocaram a casinha por uma mais nova; a velha, o caçula pegou pra ele. A lancha que ainda anda direitinho na água foi emprestada pro priminho e até hoje ele não devolveu. Deu vontade até de comprar uma outra, maior e mais cheia de botõezinhos pra brincar nos fins de semana. Mas, só podem no fim de semana, pois, dia de semana tem que estudar. Agora foi preciso comprar uma moto a mais, pra não criar qualquer sentimento de inveja ou de menos valia na família. A gangorra atual é feita sob medida e de madeira mais resistente, diferente da antiga que podia quebrar a qualquer momento. O fogãozinho que fazia comida de verdade, nem souberam dizer onde estava. Acham que foi dado de presente para quem precisava, também no Natal passado. As panelinhas ficaram demodê e já existem panelinhas mais bonitas que aquelas do aniversário. As bonequinhas e os bonecos precisaram de roupas novas e a mamãe cuidou de costurar uns panos mais vistosos e mais na moda. As antigas foram “doadas”, já que não tinham mais valor. Só a bola permanece a mesma. Está gasta, mas é de estimação. Muitos gols foram feitos com ela; e aqueles gols...Ah! Aqueles gols não têm preço.
- Papai, gente rica também brinca de casinha, né?
- Brinca, filho! Brinca! E enjoa de brincar, igualzinho a você!

sábado, 1 de dezembro de 2007

A Arte da Rotina Cartesiana

Pequena caixinha que tem um presente, um tesouro secreto e o riso da gente; leva pro fundo uma vida e, depois, eleva ao céu infinito nós dois.

Ela acordou e foi trabalhar.
Ela levou as crianças à aula.
Ela almoçou com uma amiga antiga.
Ela resolveu o problema do chefe.
Ela voltou mais cedo pra casa.
Ela pegou as crianças, de carro.
Ela resolveu passear com os meninos.
Ela comprou um vestido da moda.
Ela lanchou e brincou com os filhos.
Ela chegou quase às vinte horas em casa.
Ela resolveu ajudar o esposo.
Ela preparou um risoto pra todos.
Ela banhou-se e chamou o marido.
Ela resolveu que queria amá-lo.
Ela beijou-o e jurou-lhe paixão.
Ela sacudiu-o às seis da manhã.

Ele levantou-se com cara de bravo
E foi à cozinha tomar seu café
E pegou a maleta pra ir ao trabalho
E pagou as contas no banco lotado
E ligou pra esposa contando as saudades
E tentou almoçar com um amigo de infância
E mandou o empregado mais cedo pra casa
E ligou pros amigos no meio da tarde
E foi para o clube jogar futebol
E tomou um chopp com o esposo da nora
E contou pro irmão dos problemas de grana
E voltou para casa cansado do dia
E seguiu pro chuveiro com a roupa suada
E lembrou-se da luz da cozinha queimada
E esperou a esposa deitar-se
E sorriu com uma cara de quem quer algo mais.

Dormiram abraçados.
Casaram-se aos vinte,
tiveram três filhos,
formaram-se, os dois, em direito,
compraram uma casa,
viraram avós,
brincaram com os cinco netos,
ficaram a sós,
pra sempre, enfim!

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Viver in verso

Escrever fino ou escrever grosso.
Como se uma lapiseira 0.5 tirasse da idéia um coelho branco e bem dentuço e bem gordo e puxado pela orelha, agarrado a uma cenoura. E depois do puxão, ter que sair do cantinho escuro e ser mostrado a todo mundo que aplaude o pensamento implícito do coelho dizendo: “Isso doeu, caramba!”. O bom é que saiu, oras! Saiu!
Agora, é só saber: quanto vive o traço fino num papel?
Tempo não é nada. Antes pouco tempo ao borrão do grafite 0.9 apagado as cem vezes que o mágico treinou despistar o público com o fundo falso da cartola.
Menos mau, ainda, será?, não ter optado pela caneta que faria jus à teia de aranha rabiscada para o eterno fim cavado trezentos anos depois, enterrada junto à ossada de um coelho empoeirado.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Uma ruazinha

Uma ruazinha com ar nostálgico. Era, sim! Uma rua sem calçadas, sem cimento, sem concreto. Havia um rumo para nela se seguir, sim, mas tudo formado com a ajuda do vento e dos passos marcados pelas pessoas que ali pisavam todos os dias, por todo o tempo; ao longo do tempo que a ruazinha existia. E existia, sim!
Às vezes passava por ela, parava, olhava, o que me deixava um pouco confuso ficar ali, assim absorto, buscando captar o que aquela ruazinha significava pra mim. Havia dias em que a grama seca era contrastada, paradoxalmente, às flores sempre vívidas, reluzentes que adornavam toda a paisagem da rua. Todas as casas, tanto as da direita quanto as da esquerda que delineavam e traçavam os limites da ruazinha, ganhavam vida com as rosas, gardênias, hortênsias, girassóis, orquídeas, margaridas e todas as outras que conheço muito bem; ganhavam brilho e escapavam à visão de tantas pessoas que as quisessem absorver somente com o olhar que logo se perdia no horizonte infinito de cores.
Também nunca soube dizer se era primavera. Apesar das flores sempre vivas, um sol fosco era sempre presente. Mal se viam sombras. Por vezes, cheguei a pensar que aquele lugar era mágico; que Deus não tinha poder sobre ele. Juro que o mistério de tudo aquilo hipnotizava, promovia divagações infindas. Bastava estar ali e toda essência da ruazinha fugia a qualquer explanação lógica. Outono sem graça, seco e constante, com árvores frondosas e altas que seriam refúgio perfeito para o casal apaixonado ou o peão que descansa fazendo a cesta depois do almoço num dia de verão. Não sei! As pessoas que nela viviam preferiam ficar quietas, pois, uma rua assim, apesar de toda beleza, afugenta com tantas incógnitas tangentes. Sendo assim, havia dias em que tudo se assemelhava ao mais intenso inverno, pela falta de vida aparente. Rigorosa proteção do frio que a ruazinha inspirava; mesmo sem chuva; mesmo sem neve.
Aquelas casas altas, grandes em espaço e beleza. Rústicas e com muitas janelas. Muitas! Vi muitas outras flores através delas. Vi muitos mundos à parte, dentro daquelas grandes casas. Em uma vi três crianças correndo enquanto uma suposta mãe preparava o jantar em uma panela de pressão. Eram os sons mais comuns, os das panelas, em vez de pássaros na paisagem. Lembro-me de que segui um pintassilgo até a janela de uma outra casa vizinha. Ficamos os dois assistindo à cena que se passava na tela daquela janela: uma lareira acesa e, ao lado, uma gaiola com dois passarinhos que cantavam com uma beleza tão grande quanto a de todas aquelas casas. Afastando-me, podia ver a fumaça da lareira subindo por uma chaminé, desenhando nuvens bonitas no céu que logo se desmanchavam e se fundiam com o mistério daquela ruazinha.
E era assim aquela ruazinha, bem ali, desenhada naquele pedacinho de azulejo. Às vezes lembro e penso: quantos pedacinhos de azulejo, como este, seriam necessários para compor uma cozinha, completar um salão de festas ou um banheiro?

Ludo

Hoje quero um amor de criança, pois ela é pura, doce, meiga. Quero um amor que me faça rir; que me faça ver a vida transformada em roda gigante, em pirulito, pipoca; pois, a mesma criança pura, doce e meiga sabe, melhor que ninguém, o que é ter um passe livre para brincar com a vida de forma responsável. Sabe o que é ser querida. Sabe o que fazer num parque.
Hoje quero um abraço de criança, pois ela é segura, verdadeira, hábil. Quero um abraço que me faça ser querido; que me faça ver o mundo como um enorme colo que acolhe, que afaga, que conforta; pois, a mesma criança segura, verdadeira e hábil mostra-se frágil e conhece o fato de que até mesmo Deus, um dia, teve um filho para poder provar a esse mundo a necessidade de sentir-se envolto e protegido.
Hoje quero um beijo de criança, pois ela é livre, é sol, é lua. Quero um beijo que me tire o fôlego. Que me faça ver as estrelas cintilantes em harmonia, em júbilo, em luz viva; pois, a mesma criança livre, sol e lua, sabe que essa falta de ar nos ilumina, leva-nos ao planeta mais harmônico do universo. Eu e ela; Gênese!
Hoje quero um olhar de criança, pois ela é mensageira, toca, é poesia. Quero um olhar que me desnude. Que sobressalte minha alma como num "Raio X". Que me mostre meus avessos, meus segredos, então, espelhados; pois a mesma criança mensageira, que toca e é poesia, também, um dia, nasceu e se encantou quando sentiu-se tocada.
Hoje quero o calor de uma criança, pois ela é quente, intensa e aquece. Quero meu coração aquecido. Que faísque meu pólo mais ermo e contagie, até mesmo, os vales onde não existem carne, nem osso... as cores que só existem em meus devaneios; pois, a mesma criança quente, intensa e que aquece é sábia quando se contagia com o fogo de sua própria existência. Sabe o que essas fagulhas valem; Chama!
Que o dia de hoje seja a mensagem de amor mais puro, com o beijo mais intenso, sabor pirulito. Que essas palavras toquem o céu de forma pura e que o sol que emana vida seja ainda mais aquecido por um abraço lunar. Que Deus leia e ouça meus desejos...
Ah, como é mágico imaginar essa como sendo nossa eterna gênese, minha terna criança!

O Baú

Resolvi jogar dentro do baú algumas peças. Resolvi, ainda, xeretar lá dentro e ver se há algo útil que escondi naqueles tempos. Eram tantas coisas pra jogar que resolvi começar esvaziando-o. Foi-se tudo, de uma só vez, ao chão. Virar o trambolho foi fácil. Não dá trabalho. Só meus trecos entenderiam a razão de tanto zelo. Se eles pudessem falar... Pensando bem, se pudessem falar perguntariam por que foram parar mofados lá no fundo. Eu fingiria que não escutei e manteria o sorriso tradutor de uma aparente saudade quase inerte. Eu forçaria, de verdade, manter o zelo que lutei pra que viesse à tona.
Uma a uma, todas me traziam presentes as vidas que ficaram só nas fotografias, as mesmas estáticas num desenho capturado no tempo.
Expor-me a tal reencontro não me fez cego. No entanto, não me fez ativo. Curioso! Pode um presente, que já naquela época era chamado de alegria, transformar-se numa mera reminiscência sépia, insossa?
Por qual motivo, então, eu quis jogar mais coisas dentro do baú antigo?
Através do baú, eu passava a dimensões que já vivi. Por meio dele, eu revivia as dimensões pelas quais passei.
Sendo essa minha desculpa para aumentar o peso do trambolho, lá pelas tantas tudo ficou misturado. Tudo eram presentes; tudo era passado.
Jogar tudo fora doía. Jogar tudo no baú pesava. E me emergia quase uma sensação odiosa de um espírito vivo-morto por não saber o que fazer ou perder tempo “selecionando” os momentos mais marcantes.
No final, preferi a dor ao peso e à quase morte. Optei por isso em virtude de um argumento não menos imposto que meu reencontro com o pó involucrado (feio assim, mesmo!): o mesmo tempo que açoita as lembranças na sua aparência e valores, pelo pecado do desuso, é o remédio e prêmio àquelas vidas que usam o seu passado como estopim de um futuro zeloso. E essas vidas não merecem o castigo de uma prisão.

Da Plantação à Colheita

Mais um talho no dedo e a cana deitada no chão se amontoa por um caminho que escapa à visão.
Queria ver Maria sentada lá no quintal da casa, pilando o café servido amanhã, com certeza! Um dia hei de casar com uma moça bonita. Ah, eu sonho, sim, entrar na igreja com aquela roupa preta e um lenço no bolso; o cabelo brilhando. Penso, sim, em ter família e comprar terra boa pra plantar. No dia do casamento quero meus amigos todos lá; minha família. Sei não, mas minha mãe vai chorar demais. Mas é de alegria. É! Um dia vou casar, mas é que agora ainda não posso, né. Ainda tenho que ajuntar dinheiro. E é tanto pouco tempo pra viver, que não conheço moça tem é tempo! Outro dia me lembrei foi das meninas da Vila Ipezinho. Êta, mas aquelas eram folgadas, viu! E não eram de confiança, também. Tinha hora que era uma querendo comer o fígado da outra e a outra querendo sentar a faca nas costas da uma... nem dava gosto. Ta vendo esse sangue aqui no dedo? É pouco. Já vi foi muito mais que isso. E não eram só elas. Na vila, nem os homens eram de confiar. O Darço que mandava na cidade parecia garrote que segue a fila e só levanta a cabeça se for pra desviar do rabo do boi da frente. Era um babão, aquele. Pastava na mão de qualquer um. Ainda tinha homem que botava banca de vaqueiro, tocava a manada, montava no lombo dos cavalos que trotavam no ritmo certinho. Quem tem rédea vai até onde quiser, ou até o cavalo morrer e trocar por outro, né. Tinha cobra na cidade, também, que nem aqui, só que é gente... Tinha hora que eu não sabia quem era pior. Se, de um lado, tinha o vaqueiro que era quem mandava de verdade e não levantava o rabo do lombo dos cavalos, por outro, onde se pisava tinha cobra traiçoeira. O Darço, coitado, nem via o que acontecia ao redor. Ou preferia não ver, né. Diz que, de gente assim, se desconfia duas vezes. Já vi a Miana e o Jerssi soltar os venenos na hora certinha. Um dia, dizem, né... não sei... que o Jerssi fez umas propostas de desposar a Miana lá detrás do monjolo. Miana não quis. Queria casar antes. Mas ficou nisso, né. Miana tinha apreço pelo moço; tinha simpatia. E ele, muita estima pela moça. Acontece que de tanto levar não, o Jerssi se engraçou com Dorinha, moça que chegou na vila um tempo depois, e a tal moça também começou a se arrastar pra ele. Resolveram noivar. Acontece que o Boloca, irmão da Miana, viu as proximidades da irmã com o Jerssi lá no monjolo e resolveu delatar. Aí foi farofa pra todo lado. A vila toda começou a falar mal do Jerssi e tomaram partido da moça. Resultado foi que ela resolveu falar que ele tinha era forçado, e que não falou nada antes pra proteger a reputação dela e a posição do moço, que até tinha certo prestígio. Ele bem que tentou se justificar, mas não deu. Teve que sair fugido e nunca mais vi o sujeito. Perdeu foi tudo, aquele. Daí a vila toda ficou sabendo e eu nem sabia quem era pior... se era o Jerssi que fez o malfeito ou se a Miana que mentiu, dizendo que foi forçada. Acho até bom não julgar, por quê, depois, quem vai parar no inferno sou eu. Já é meio desagradável viver com esse povo aqui. Imagina dividir espaço com eles lá na casa do tinhoso. Deus que me guarde disso. Prefiro ficar aqui na cana. Cá eu ganho pouco e talho o dedo, mas só me preocupo com a comida e a visão de Maria todo dia. Hei de casar com uma moça como ela, sim. Tem a Ruiva que se engraça pro meu lado, mas não chega aos pés da Maria. A Maria que é razão de sorriso. Se Ruiva tivesse as pernas dela; a beleza. Ah, se fosse dela! Ah, se fosse bela! Como ela, só o amor de Jesus que, aqui na vida, só se sente, não se vê. É tudo época! De plantar e de colher.

Zezinho, Joana e Um Amigo

Dizem que escrever histórias requer paciência. Dizem que pede inspiração; uma dose de imaginação, criatividade. Há outros que dizem que só se precisa da lembrança como companhia, sentada na cadeira ao lado.
Há dias em que sinto que as lembranças são chatas, a inspiração é uma companheira que só me faz querer sentar-me à rede e exercitar o silêncio vazio, a paciência parece uma conhecida de infância (e já passei desta há décadas!), com a qual não guardo mais qualquer relação de intimidade. Colocar as coisas em palavras, nesses dias, é o último recurso.
Li, outro dia, das várias páginas rasgadas por um autor na tentativa de escrever a primeira frase de sua história. Tem que haver a chama divina que traz à terra o sopro ou fagulha lingüística manifesta em sopa de letrinhas num papel.
Em uns dias, as letras aparecem como flashes ou imagens que não param de existir. Em outros, a câmara só tira fotos queimadas, desfocadas e ocas. E hoje é um dia que segue a segunda sugestão. É, também, um último recurso.
Como já perdi o sorriso e o prazer, vale qualquer rabisco que faça o tempo passar. Passatempo, sim! Mas, não lhe parece que o passatempo vivido nos tempos de criança soava mais leve e contente?
Antes de me justificar, rascunhei uma primeira frase:
“Quem imaginaria que a espera pelo próximo trem...”
E travei!
Vi a cena de uma jovem mulher parada numa estação à espera do trem de volta para o lar. Eu sabia como era o lugar. Poderia descrever, inclusive, o que se passava dentro da jovem de vinte e cinco anos que eu vi. Senti sua respiração, tinha certeza do que seu olhar triste queria que eu pusesse no papel, vivi com ela a mesma batida de coração. Ouvi o que sua alma queria me dizer. Porém, hoje é um daqueles dias em que me sinto incompetente. Apaguei a frase, e entreguei essa alma nas mãos de Deus. Minto! Virei as costas e fui embora, bem assim! Sobrou-me a culpa. Sorte ter como álibi o sentimento ruim que me justifica qualquer fracasso no dia de hoje.
Engraçado! Veja só como são as coisas!
Ontem rimos de um jovem que se aproximou dizendo:
- Se eu tirar um sorriso de vocês, ganho um trocado, moço?
- Sim, vamos lá! – e não tinha como ser diferente a resposta ao garoto com tintas no rosto.
Não sei a razão, mas minha intenção era simplesmente ficar sério todo o tempo, a fim de saber quantas coisas o tal menino sabia fazer. Deixei que esgotasse todas as tentativas.Umas sem grande graça, verdade. Outras engraçadíssimas! Permaneci sério. Foram contados três minutos e ele abaixou a cabeça e substituiu o sorriso inicial, em função da chance dada, pelo ar sério:
- É, moço! Desculpe-me! E obrigado pela oportunidade. Tem dias que a gente sente que faz, mesmo, papel de palhaço sem que fosse essa a intenção real, né? – E sorriu, saindo.
Mas gargalhei com o comentário. Assustado, ele virou-se e esperou o desfecho de minha reação inesperada.
- Tome aqui, rapaz! Você é muito bom no que faz! Deveria pensar em levar a sério sua arte. Todos os dias você está aqui?
- Sim! – sorridente e com ar de orgulho.
Despedimo-nos dele, felizes, e fomos.
Hoje, enquanto voltava pra casa, resolvi parar no mesmo lugar onde encontrei aquele jovem de ontem. E não havia criança alguma com rosto pintado. Mas tinha, sim, um moleque sentado no meio-fio, hoje sem máscaras e sem fazer qualquer questão de arrancar sorriso de ninguém. Aproximei-me, sentei-me e perguntei:
- Olá! Está de folga? Não tira sorrisos dos outros, hoje?
- Hoje não faço as pessoas rirem, nem pinto meu rosto. Mas, sabe, moço... tem dias que a gente sente que faz papel de palhaço sem que fosse essa a intenção real, né?
Fiquei em silêncio por uns instantes.
- Mas você não gosta, então, do que faz?
- Gosto, sim! É que hoje eu só queria descansar um pouco. Meus amigos pegaram meu dinheiro de ontem e sumiram. Acabaram me fazendo de bobo. Tô triste!
Conversei mais alguns minutos com o Zezinho e vim embora. Prometi voltar pra rever o novo amigo mais vezes.
O dia passou e creio que estou como o Zezinho. A grande diferença é que ele sabia o motivo do seu desconforto. E os meus são tantos, que nem sei qual deles usei como pretexto. Como pode? Os nomes que se dão às coisas são os mesmo. Tristeza, guardadas suas diferenças ortográficas e fonéticas características de cada idioma, tem o mesmo significado em todo canto; alegria é alegria em todo lugar; medo idem... Como pode a mesma coisa ser vista de jeito tão peculiar, no entanto? Como pode ser tão subjetiva a experiência de cada uma? E, logo, pode se desfazer!
Veja, foram-se minutos que preenchem quase uma hora de meu tempo, já! Parece que está funcionando. Só não consegui, ainda, uma idéia para escrever.
Há uma hora eu conversava com um grande amigo ao telefone. Certa vez ele me disse que o grande segredo da vida era abrir a geladeira, pegar aquela cerveja gelada e curtir os momentos antes da grande confusão. Lembrei-me da conversa àquela época:
- Mas, Zé, ela descobriu tudo e você nessa calma?
- Rapaz, só amanhã que vou saber do desfecho. Nem sei o que ela pensa disso. Vou me estressar pra quê?
- Ta certo! Até lá, a cerveja!
- Mas é óbvio! Uma loira de cada vez!
Sabe de uma coisa... Talvez, esteja certo.
Amanhã verei Zezinho. Temos muito que aprender. É estranho como em todo tempo é preciso fazer com que as coisas sejam vividas. Se não é pela inquietude que uma angustia gera, é pelo excesso de inatividade que esta mesma se manifesta e dá voz. O grande perigo é se perder nisso e a desorientação ecoa em tudo.
Quando me omiti há alguns minutos, a alma daquela jovem queria me dizer o seguinte:
“Quem imaginaria que a espera pelo próximo trem seria o início de uma viagem fascinante! Tal fascínio não me cegou os medos nem evitou as quedas que eu previa levar. Trouxe, daquela estação, todos eles comigo. Eram meus! Só não previa que, na bagagem, eu acrescentasse asas que me fariam conhecer jardins tão vistosos em minha volta ao lar”.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Versos da pouca prática

Do espaço vazio
à cabeça cheia
de idéias soltas,
o silêncio dói...

Mas, só quando não há
a voz irritante
de um anjo vadio
perturbando meus sonhos de herói.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Um Dia a Casa Cai

Dona Manda é a candura em pessoa. Nunca vi!
Seu único defeito, opinião unânime entre nós, foi parido por ela.
Coitada dela! Mãe nenhuma merece.
Foi hoje que vi Dona Manda perder a compostura.
Veio o peste...
... Bateu no vizinho, tacou pedra no Zezinho, quebrou vidro, xingou cinco e correu.
Ao que ouço, bem baixinho:
- Filho de uma mãe que não sou eu!

quarta-feira, 14 de março de 2007

Uma Data Especial

Um dia, Deus acordou e fez o mundo. Foram seis dias de trabalho. No sétimo, descansou.
Lá pelo oitavo dia, assim que levantou-se, subiu aos céus e pôs-se a observar Sua obra lá de cima, contemplando a arte feita com perfeição. Tinha um vulcão. Notou que acertou em fazer a montanha e seu pico coberto de neve, afinal, se há fogo, há de se ter algo que o controle. Água gelada Lhe pareceu uma ótima idéia!
Reparou o espaço enorme onde só existe o vento que transparece o céu azul e as nuvens que brincam de fazer formas. Daí, soltou um outro sorriso pela brilhante idéia de enfeitar esse espaço com pássaros, dos mais coloridos aos que bailam sozinhos ou em companhia.
Lá embaixo, não tinha como não sentir orgulho do verde das árvores com o amarelo da terra e o azul do mar em contraste ímpar. Tratou, também, de não deixar, aqui na terra, qualquer pessoa com dom artístico que superasse a combinação dessas cores, feita por Ele.
Lá na grama vinha uma formiguinha, programada para cortar folhas e viver embaixo da terra; programada pra fazer sua casa, pois haveria dias em que proteger-se era essencial; programada para viver, e desafios são feitos de propósito para se ter uma razão nas coisas. Assim fez com tudo que é vivo. E sorriu, outra vez!
Pai Nosso!; Mãe Natureza! Sol do dia: luz; luar da noite: luz; estrela-do-mar: água; estrela no céu: infinito.
Viu lá, escondidinha atrás da sombra de uma pedra, uma mulher. Ali por perto, exposto ao sol, um homem. Tocou os dois, um de cada vez, não por não conseguir tocar os dois ao mesmo tempo, mas só para poder contemplar melhor Sua criação. Em um, deixou o experimento de um choro triste; no outro, a vivência de lágrimas sorridentes. Em ambos, alguma espécie de contemplação do que se fazia evidente em seus corações naquele instante exato, mas infinito em sua força. Aí estava a Vida!
Foi aí que Ele parou de sorrir. Franziu a testa e divagou em seus pensamentos. O mundo parou naquela hora precisa. Fez-se silêncio e vazio. Foi, então, que Ele retomou a onividência e proclamou o amor como o único sentimento eterno e mais nobre, bem como o perdão seu aliado oposto e antídoto, destituindo o ódio de seu posto tão ostentado por alguns que ainda não O conheciam. E sorriu como nunca antes feito! Depois de um tempo que Ele induziu alguém aqui entre nós a dizer que "os opostos se atraem".
Tudo isso em um dia. Um dia especial! Um dia eterno!
Mostrou-se, então, e, mais uma vez sorrindo resplandecente de amor, desejou a uma vida muito especial, feita por Ele:
- Feliz dia novo!

sábado, 24 de fevereiro de 2007

A Feira

No mercado municipal tem tenda; tem barraca. Lá tem fruta: goiaba, banana às pencas, é o que mais tem. Tem, também, colesterol pra todo gosto: pastel, pamonha, tudo frito. Tem pizza de tarde, de noite, todo dia; frango assado, palmito, farofada e tempero pra qualquer festa. Vendem-se doces e salgados de muitos tipos e lugares. E o mais importante: a gente que os use.
Tem velho, homem, mulher, gago, baixo, gordo, forte e desdentado que finge um sorriso bonito. Tudo falso!
Mas há outros mal-vestidos ou bem arrumados que chegam pra alimentar quem se gosta, presentear quem se quer, pois lá tem brinquedo, além de comida. É bem verdade que muitos deles não duram nada, são quase de mentira. Tem mentira no mercado. Não sobra, mas também não falta!
Lá se vê gente que grita, gente que ouve, que murmura, fala grosso e pechincha. Gente que vai e volta e passa oito vezes pelo mesmo lugar. Acho intrigante, mas tem gente que vive na feira, literalmente. E gosta! Também, quem entra, nunca sai de mão vazia; sempre ganha algo em troca. Vira tudo uma salada só! É mistura de todo canto. Tem daqui, dali, do interior, exterior, da fábrica, da serra, da água doce, da terra, do mar, que voa...
Tem até um mendigo que quando vi sentado na porta de entrada da feira pelo sétimo dia consecutivo, perguntei:
- Por que não entra nunca à feira?
- É que quem tudo vê, nada tem.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Extra! Extra!

Num jornalzinho:

[Na cidade de Finaqui, um fato inusitado chamou a atenção de moradores e autoridades. Alunos de uma escola da rede pública dissertaram sobre o tema “Violência”, durante a primeira semana de aula.
Tamanho foi o susto do professor ao se deparar com duas redações que o deixaram em uma situação embaraçosa.
O primeiro aluno (J.S.P.) escreveu o seguinte:
“A violência é um mal real em nossa sociedade. Deve-se fazer de tudo para tentar erradicá-la do nosso meio, pois, benefícios ela não traz algum... Durante as férias, minha família sofreu um forte golpe por conta dessa onda de maus-tratos evidentes em nossa cidade... E, então, meu tio estava voltando para casa em seu carro novo que, com tanto sacrifício, conseguiu comprá-lo quando, de repente, foi abordado por três sujeitos encapuzados que o forçaram a sair do carro e a entrar no porta-malas... e após quase três horas desaparecido, sem dar qualquer sinal de vida à sua família, ligaram do hospital pedindo que fossem até lá para preencherem os formulários de internação... e somente após dois dias meu tio pode voltar à sua vida normal... espera-se o dia em que as autoridades sintam-se na pele daqueles que sofrem com o problema da violência e ajam de forma exemplar com os infratores... em nome do bem-estar social.”
Em sua redação, o outro aluno (J.S.F.) expôs suas idéias da seguinte forma:
“Não há dúvidas de que a violência retrata bem o que seja nossa sociedade nos dias de hoje: um sistema falido e carente de justiça... a desigualdade social é o principal causador dessa desordem vivenciada... em nosso dia-a-dia... A classe pobre é sempre desfavorecida e discriminada. Há algumas semanas, três amigos meus foram acusados de terem roubado um carro quando, na verdade, não foram eles que roubaram... foram presos e lá estão até hoje... muito se vê, nos bairros pobres, crianças crescerem e acabarem por incorporar o “ilegal” como parte de sua vida, uma vez que é assim que sempre o verão, enquanto um membro da classe baixa... e clama-se, sim, por justiça em nossa sociedade... e é também necessário que os nossos comandantes usem do bom-senso para lidar com essas questões, sem tratar a classe baixa com indiferença e violência... eles devem tentar trazer a paz à nossa sociedade, mas com a seguinte pergunta sempre em mente: E se fosse meu filho o infrator, como eu o trataria?”
Ao ser questionado por nossa equipe de reportagem como foi resolvido o impasse, Ferdinando Donnateli Praxedes (o professor) foi categórico: “Cabe a mim fazer com que eles saiam da escola sabendo escrever um bom português”, arremata.]

Fiquei curioso e deveras indignado por não terem insistido em saber a nota dos dois alunos. “Êta, equipe de reportagem incompetente! Jornalistas assim é o que não faltam”. Mudei de página e fui saber das novas contratações do meu time.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Singular

A mãe chamou o filho que chegou do primeiro dia de aula e foi direto para o campinho jogar futebol com os amigos:
- Vem almoçar, menino!
- To indo, mãe! – e entrou.
Sabedor das coisas e bom aluno, foi logo dizendo:
- Mãe, hoje a professora de português me fez elogios na sala de aula. Disse que, mesmo depois das férias, eu continuava sabendo a matéria do ano passado.
- Hum! E qual era o assunto, meu filho?
- Plural.
- É aquelas coisas que a gente usa pra dizer quando tem mais de um, né?
- É, mãe! Bem essas, mesmo. – olhando de rabo de olho e sério.
- Tem que aprender direito pra não ter problema com trabalho quando crescer. A maioria das pessoas falam errado. Seu pai sempre disse isso.

- Hum!...
- Mas todo mundo tem seu jeito particular. Eu, mesma, não gosto de quem me corrige a fala. Não concordo com essas coisa! Vou pegar os prato pra gente comer.
O menino manteve a quietude, por respeito à mãe, e não a corrigiu. Mas, sussurrou baixinho, enquanto sua mãe pegava os pratos na cozinha:
“Essa minha mãe discorda em tudo... e tem um jeito tão singular de usar o plural!”

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Pessoa

PESSOA

Se tudo vale a pena
E a alma é grande que voa,
Vai ver, o que falta é só o notável
Detalhe de ser Pessoa.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

A Nascente

Ainda penso naquela nascente
lisonjeada, por certo, pelo que um dia fez:
na falha do ipê sorria, dormente,
em raios do sol (discreto e poente)
a pele de lua brilhante e cortês.

“Amor para sempre”: dissemos em jura.
Plantamos, crescemos. Raízes fizemos.
Em nome dos frutos vivemos tortura;
machados, fogueiras... Viramos moldura!
Mas, água e chão sempre em vida tivemos.

E um raio partiu nossa estrada em curvas.
“Sementes são tudo...” quem há de saber?
O rio dos corpos num dia de chuva
(que lava a pupila bem cinza, bem turva)
pode ser a sombra de um novo ipê.

Ainda penso naquela nascente
lisonjeada, por certo, pelo que um dia fez:
“Por que não te enterras ou ficas dormente,
torrente reduto de água demente?
Que fiques doente ou que morras de vez!”

De Sapos e Belezas

Nunca vi em reino algum
Bandeira que não se hasteie;
Nem ponte que não se eleve
Ou taberna que não sirva rum.

Nunca vi rei se fazendo de bobo,
Embora, muitos, só as vestes distinga.
Nunca vi herói que não se vista de ouro,
Nem bobo que não tenha língua.

Por incrível que pareça,
Toda bruxa é, de fato, desconcertante.
Todo mercador é bom de papo.
Mas, princesa que vira sapo?...

Ó, musa instigante...
Igual a ela, nunca vi, nem consigo conceber. Nem sei como terminar um poema por aquela que, de longe, só me diz tranqüilidades e sorrisos, em pensamento. De perto, bem... foi enquanto partia daqui, rumo ao reino de meu amigo Ferdinand. Foi um desvio de caminho que me fez aprumar a montaria, em fuga de uma tempestade que despontava no horizonte. Toda estrada é só um guia. Não há como dizer que ela seja o destino de alguém, pois ela não obriga. No entanto, ela se insinua. Sugere e induz a uma direção. Comumente, seduz. E, lá atrás, imóvel e sorridente, vi pegadas e paisagens se despedindo, acenando um “até breve”. Lá na frente o próximo passo, a próxima vista, sempre rumo ao norte. Fui seduzido mais uma vez. No entanto, o destino me parecia muito mais sorrateiro do que até então eu poderia prever. As sentinelas, pela primeira vez, mantiveram-se imóveis. À exceção das crianças e mercadores, ninguém mais notou minha chegada ao lugar estranho. Nem me barraram à entrada da cidadela! Não me cobraram pedágios! Não exigiram, de mim, deixar as armas confiscadas até que me fosse embora! Talvez eu já houvesse passado ali e todos me conhecessem. Era essa a impressão, mas posso jurar que não conhecia o tal lugar. Não me propuseram brandir espadas em qualquer momento. E eu me adentrei sem qualquer tipo de incômodo, até onde quis.
Resolvi parar em uma taberna. Era hora de me alimentar, aquecer o corpo febril e trocar as roupas encharcadas de chuva. Sentei a uma mesa, lá no canto, enquanto ouvia a música alegre e esperava pelo bom moço trazer rum e comida. Bebi, bebi e comi. Mas a febre teimava e as danças e risos não amenizavam o efeito do frio. Bebi um tanto mais e me retirei aos aposentos.
Daí, só me lembro de um coaxar junto ao meu ouvido.
Não era abrir os olhos que me faria mais descansado. Porém, não eram os olhos fechados que trariam maior sossego. Vi o sapo me olhando, juro, aconchegado em cima de um baú de madeira que havia ao lado esquerdo da cama. Foi por puro reflexo que resmunguei:
- Que você quer aqui, sapo? Deixe-me dormir em paz.
Mas, ouvi de volta:
- Sou rã, não sapo.
Assustei-me com a voz. Era sonho, claro!
- Como assim?
- Sou rã. Desculpe-me pela abordagem, mas sigo-o desde que adentrou a cidadela.
- Por que eu?
- Sei quem é Vossa Majestade. Encontramo-nos, ao acaso, durante a primavera, no torneio. Muito me preza saber que Vossa Majestade é hábil com armadura. Mas, parece-me que os galanteios em trajes mais leves não demonstram habilidade tão fina nos reinos de lá.
Delírio pela febre, havia de ser; cônscio, no entanto. Era ela, com toda certeza! Durante o baile do torneio, não consegui deixar de segui-la com o olhar. Havia muitas pessoas, muitos nobres e, de todo o salão, foram os olhos dela que me cegaram. Hei de assumir que a reciprocidade existiu, embora essa certeza seja a que me aponte a inabilidade a qual ela se referiu.
- Mas, então, é você a nobre pela qual me apaixonei e que sumiu sem mais deixar qualquer sinal? Aliás, nobre? Nesse pedaço de terra plebeu?
- Pelo que me aparenta, não sou a única a rondar por estradas menos nobres. Quanto à minha condição real, não me reconheço mais como princesa, é bem verdade. Esse é o Reino de meu pai.
- Mas, não faz sentido! Desculpe-me, mas toda princesa sabe de sua condição e não se perde o título. Se esse é o Reino de seu pai, por lógica, também se torna seu.
- E como posso assumir tal responsabilidade se me transformei em uma figura repugnante? Talvez a honradez em negar esse prestígio seja meu único sentimento nobre.
- Já vi outros amigos virarem sapo. O próprio Ferdinand casou-se com Louise nessa condição. Era ele o sapo, e ela seu antídoto. Por curiosidade, também pedi um feitiço e, por um dia, pude saber o que é ser sapo. Mas, nem mesmo nas histórias que se contam, as princesas são empenhadas em tamanha crueldade. Qual a prosa dessa sua condição?
- Um feiticeiro chamado Fíar resolveu que, pela falta de coragem de meu honroso pai em conquistar novas terras, sua maior conquista, eu, seria transmutada em rã, por todas as noites chuvosas que ilham nosso Reino. Sombrio também traduz o semblante de meu pobre pai. De que adiantam vestes nobres se o espírito não consegue vender um sorriso, sequer?
- Pois, sendo assim, ainda há dias em que o feitiço não surte efeito, certo? Só toma essa forma em dias de chuva...
- Não sei se notou, mas a nuvem que toma a cidade é constante. É acima dela que habita o feiticeiro. Além de cruel, invejoso. Merlin já se pronunciou em ataque ao plágio, mas, logo depois, desistiu do intento, julgando haver maiores importâncias em sua vida do que os caprichos de um mago menor.
- Diga-me: existe remédio para a mágica? Todos sabem que sempre há uma poção para todo feitiço. Não seria justo que, além de todas as estranhezas dessa estória, fosse essa desgraça mais uma exceção ao seu caso.
- Nem todo crime é perfeito, como bem sabe. E nunca há de ser. A julgar pela falta de coragem de meu pai, Fíar nunca ousou pensar que algum cavalheiro ou príncipe se interessasse por mim. Não haveria atrativo algum em se querer casar com a filha do Rei de cá. Amor é o antídoto.
- Um beijo, então?
- Não! Amor!
- Há algo nisso que justifique você ter me seguido desde que cheguei aqui?
- Desde o baile, é o sentimento que nutro por Vossa Majestade.
- Por noites seguidas, também estive em sonhos, reinos, jardins, cidades à sua procura. Nunca abandonei esse desejo. Ironia pensar que não fui eu, mas você quem me encontrou. Deite-se aqui e proteja-se do frio. A feiúra que em mim habitava até hoje, há de se transformar ao amanhecer. Vejo suas palavras mais nobres que a aparência que se me mostra. Há de ser sol e estrelas amanhã.
Seu semblante resplandecente fundiu-se com o sol dourado que adentrava a janela pela manhã.
De todas as constelações que vimos, ainda hoje contemplamos uma a uma. É esse nosso brilho.
Essa é nossa história e aproveito sua distância para ocupar-me ainda mais dela em meus pensamentos. Hoje existem três reinos, para nós: o dela, onde se encontra agora muito feliz, após o banimento do feiticeiro e da liberdade heróica de seu pai; o meu, aqui, ansioso por seu retorno daqui a duas luas; e o nosso, que não nos abandona, onde quer que estejamos.
Ocorre-me uma inspiração maior, nesse momento, quanto ao poema que iniciei.
Suprimo a última estrofe e finalizo assim:

Por incrível que me pareça,
Se o amor que nunca chegou
Ora se mostra como fato,
Que mal há, se já fui sapo?

As Ilhas Antítese

Aqui na ilha não há vida. Nem a minha se apresenta com fôlego maior que um sopro tímido. Aqui na ilha não há peixes, ainda. Vi pequenos cardumes se refugiarem na ilha de lá que nem vejo mais. Quem sabe não voltem amanhã. Aqui na ilha não há comida. Sempre vejo peixes pularem daqui pra longe no mar. Só os bichos que aos poucos foram pra ilha de lá. E estes, já nem os vejo mais.
Pensei que nunca estaria sozinho aqui na ilha. Mas agora estou. Nem mesmo os cocos que estão em todas as ilhas de que me lembro... aqui não estão. Ô mundo oco!
Sob o sol escaldante me pelo a pele enrugada e mais enrugada pelo mar salgado que só me salga a boca. Nem pra minha sede ele é útil. Até esse pedaço perdido de terra me ampara melhor.
De todo canto dessa ilha só ouço o ruído irritante desse mar insosso e só vejo espuma branca que se ergue nele, com mais areia pálida e garrafa de vidro... garrafa?! Juro que se agora não estivesse segurando a garrafa de vidro, diria ser uma miragem “miragem é no deserto, oras!”, alucinação... sei lá! E há papel dentro.
[Diário: ontem fui pego pelos guardas do rei. não me insulta o despropósito, pois meu irmão, por sorte nesse acontecido, estava com trajes que o confundiam com minha figura. só lamento o infeliz não ter se pronunciado em minha defesa. faria qualquer coisa para defendê-lo. sua infelicidade torna-o imaginável assim, não pela sua omissão perante o irmão, mas por sua vida desgraçada. daqui ouço os guardas amaldiçoando meu nome. seus olhares também me condenam quando passam em frente a minha cela. fito-os, mas não alimento ódio. só me ocupa a mente minha tortura daqui a três dias. que destino me aguarda?]
Há letras no papel. Será que saiu de uma ilha essa garrafa?
[Diário: hoje ouvi, pela manhã, o guarda falando da tortura da gota. minha morte seria lenta. gotas de água caindo sobre a cabeça vagarosamente, até que seja perfurada e cause algum tipo de dor em minha mente.]
Há frases nesse papel. Quanto tempo pra chegar ao mar aberto?
[Diário: é noite, novamente. o silêncio me deixa sem sono. lá fora nem parece haver vida. nem mais consigo imaginar os fanfarrões nas tabernas em algazarras que duram noite adentro. Corinas, Luzias, Celestes... estas só riem, choram e gemem, ao mesmo tempo, em suas alcovas. fora delas são sérias, amarguradas e toscas, como eu com olhar morto rumo a um horizonte sem cor. durante a tarde, ouvi rumores de minha execução, acredito. sugeriram ao rei meu enforcamento. amanhã decidem por mim meu futuro, ou destino, já que esse é um fim. o tilintar das chaves me adormece logo.é ronda...]
Letras minúsculas sempre! Faz lógica? Toda frase começa com a letra maior, qualquer um sabe. Quando eu escrevia era assim. Um dia me pediram uma matéria sobre justiça. Mataram alguém na rua. Só me lembro de que justo era o juiz. Nem sei mais se foi ele o justo.
[Diário: manhã cinzenta. gris da cela, da parede, do chão, dos meus olhos e de quem está perto. esticar-me-ão pés e braços. crescerei até arrancarem-me tudo. crescimento vão. crescimento vil. pequeno, faço-me presente, tanto que estou preso. nem em tortura os prazeres são deixados de lado. Biltriz me chamou em segredo e comentou um plano de fuga.]
Essa história... parece coisa de doido! Admira-me como ele conseguiu lançá-la ao mar e veio em minha direção. Quanto tempo pra chegar até mim?
[Diário: é tarde. há sol lá fora. um guarda me disse que meu destino seria a guilhotina. Isso não posso admitir! Separar meu coração de minha cabeça... Isso não! Deus me proteja em meu intento daqui para frente. Prefiro que minha alma chegue inteira aos céus. Biltriz me mostrou o local da fuga numa parede da prisão.]
...
[Diário: Noite chuvosa e chorosa. Mas um choro de alegria é o que me toma conta por dentro. E por fora também. As gotas do céu molham minha cabeça e papel, e meus olhos também embaçam por si só. Meu irmão livre está mais perto de mim em memória. Mas posso me distanciar dele em matéria, agora. Lançarei esse diário ao sol, aos ventos e à água. Que se queime o que for necessário. Que mergulhe se for esse seu destino. Ou que alce vôo. Agora, meu árbitro sou eu, livre. Até breve, destino!]
Enquanto nado, queria saber quantos dias esse diário viajou preso, dentro da garrafa. Os peixes e os bichos da ilha de lá, onde estão? É aquela. É naquela ilha... esta... é nesta que há vida.

Adivinhas!

Esta é uma espécie de brincadeira "o que é, o que é?" feita despretensiosamente. A resposta diz respeito a um instrumento musical:
A Arte de Quem?
Como pode, no mesmo corpo, masculino e feminino agirem de maneira independente e harmônica, ecoando sons em equilíbrio?
Se a delicadeza dela hora se expande em movimentos milimetricamente calculados, o passo preciso, longo ou curto do rapaz dá cor ao soneto.
Imagine somente duas estações por ano.
Imagine arco-íris sem vermelho.
Quem nunca parou pra olhar o encontro do sol e da lua e não pensou em união?
Pois, pense se o sol fosse só o sol e não divagasse em pensamentos sobre sua companheira delicada, introspectiva e misteriosa. E se a lua morasse sozinha lá no céu, será que brilharia vistosa?
É bem essa a relação dos dois de quem digo.
Ele os guia pelos cantos que se pode ir. E de nada valeria ir, se não fosse o apoio preciso da companheira que permite o passeio.
Seria ele mudo ou cego em tiroteio, ela uma espécie de sindrômica do pânico que só consegue dar seis ou sete passos sozinha.
É nessa dependência saudável que os dois sorriem, choram, crescem, discutem e constroem a relação.
É de unha crescida e bem cuidada, bem como de mão calejada, o segredo sinfônico de tanta paixão.
A morada dessa orquestra?
Sou eu quem pergunta se há qualquer sugestão.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Reflexo

O amor?
O amor não tem poder.
A não ser o imaginado
por quem o vê.

Nem, tampouco, inexiste.
Já notou o riso solto
dos olhos saltados
de quem era triste?

É o amor que se me mostra?
Será eu quem o mira?

- Filho,
É que há duas portas
entreabertas nessa trilha.

Juras

Das juras que se fazem enquanto inebriado de amor, somente as pronunciadas parecem ser verdadeiras; e só parecem, pois, haja repetição para que essas se tornem verdades incontestáveis. Depois de muito repetir o ritual, o Gera passou por uma que não esperava.
Sair do trabalho na sexta-feira era motivo de sorriso. Todos sabiam disso, mas Gera sempre contou com Dora para fazê-lo exímio nessa arte. E lá ia ele. “Hoje é sexta, Gera”. – dizia um; “Ah, Gera, que meu fim de semana seja tão bom quanto o seu” – brincava outro. E lá ia Gera.
Toda sexta-feira era o mesmo caminho. Do trabalho, seguia para o trabalho de Dora, e porquanto não findava seu expediente, era tempo de sentar-se para ler uma revista e tomar um chá. Quinze minutos atento à leitura e um “eu te amo!” dispersou seus interesses para a mesa ao lado:
- Eu também! – dizia ele, olhando nos olhos dela.
- Ah, assim não vale.
- O que não vale?
- Fala direito.
- Ta bom, então! Eu amo você como nunca amei ninguém na vida! – sorrindo.
- Lá vem você querer me comparar. Que mania!
- Claro que não! Só estou enfatizando meu amor por você.
- E precisa falar das outras?
- Mas, meu amor, estou falando é de você, só pra você. Nem pensei em ninguém.
- Ah, então fala assim, aleatoriamente? É só da boca pra fora? – meio manhosa, porém, com raiva expressa e evidente.
- Você complica as coisas, heim! – e se afastou.
.....................................................
- Pôxa, eu só queria que dissesse “eu te amo”.
- E eu disse. Você que parece que não acredita nunca! Daqui a pouco vai querer levar isso pra análise. – e sussurrou um “ e bem que precisa”.
- Que foi que você disse, Júlio?
- Eu não falei nada. Só falei que fico chateado quando você precisa que eu diga a toda hora que amo você. Que necessidade é essa, Deus do céu?! Já tirou meu humor e a culpa é sua, Cléo.
- Era tudo tão simples! Não precisava chegar a esse ponto.
- Ah, é? Pois então tem que ser tudo do seu jeito, não é, mesmo? Vou fazer do seu jeitinho. Quer ver só?
Gera, só nesse instante, tirou a revista que ocultava sua atenção na conversa, pois, o tal Júlio levantou-se e profetizou como nos tempos da Roma Antiga, a quem quisesse ouvir:
- EU TE AMO! – e ainda saiu, baixinho, depois da declaração, um “cacete!”. Sentou-se, cruzou os braços, armou o bico e perguntou em tom baixo: - Ta feliz agora?
Duas velhinhas que passavam com sacolas de compra nos braços abraçaram-se, pálidas, e seguiram caminho olhando para trás. O músico diminuiu o som do violão e começou a murmurar a música que cantava, fixando o olhar nos dois. Uma criancinha que passeava com seu irmãozinho mais velho virou-se para seu pai e perguntou se o moço estava bravo, no que o pai ironizou “Não, minha filha, eles só estão brincando. Um dia você entende”, e sorriu. À exceção de um segurança que prontificou-se a uma vigilância mais próxima e os vendedores fuxicando entre eles em tom de zombaria, só Gera tentou agir de forma natural.
- Não precisava disso, Júlio. Deixa de ser ridículo. Ai, que vergonha, meu Deus! – abaixou o rosto com a mão sobre a testa.
- Se não está satisfeita, fale. Melhor dizer o que pensa. Parece que nunca está contente com nada do que faço.
- Só queria que me dissesse “eu te amo!’, eu já disse.
E, justo nessa hora, a loja de discos resolveu aumentar o volume da música de um cantor que estava na moda, anunciando a promoção. Gera não ouviu mais nada, mas pôde ver o Julião se aproximando do ouvido dela, pronunciando umas palavras que a fizeram sorrir e beijá-lo.
“Ué, rápido assim?!”- pensou.
Gera só não teve a certeza do que ele dissera, mas Dora chegou nesse instante. Prontamente, ele se levantou e sussurrou baixinho:
- Amor, quantas vezes eu preciso dizer que amo você, para que acredite que eu amo você?
- Ah, amor! Que pergunta!... Mas, quer saber, mesmo? Sua carinha me diz isso a toda hora.
Diz o Gera que aquele foi o fim de semana da certeza de que ela era a mulher de sua vida.
Também, cá pra nós, Gera, já não era sem tempo. Doze anos de noivado!

A Arte em Preto e Branco

Diz-se da arte como uma paixão. Diz-se dela como um sentimento; como algo que fuja à razão. “A arte só é arte quando é sentida” ou como diria um mestre da arte escrita: “De todas as coisas humanas a única que tem seu fim em si mesma é a arte”.
Admiro-me, por vezes, quando assisto a uma crítica relacionada a qualquer espécie de arte. Parece-me que se foge um pouco (para ser ameno) do contexto visceral e veste-se a máscara da testa franzida e do olhar compenetrado, austero e sóbrio (comumente sombrio).
Pois...
Foi com uma figura dessas que adentrei o Museu de Arte de Vaneio. Ela uma figura séria, formal e acolchetada na “ciência da arte” dos pés à cabeça, de corpo e alma, embora esta última esteja em segundo plano quase sempre na mente dessa minha amiga:
- Note os detalhes da fachada. Muito bem planejada! Parece quase que uma transição do Barroco para o Iluminismo... – não me lembro exatamente quais desses períodos da História ela citou. A mim tudo parecia técnico demais. - ... Bravo! Magnífico!
Eu, o oposto, aquela figura informal, curioso assumido de jeans e camiseta branca fui me aproximando e à medida que subia as escadarias do museu, a cada degrau, mais me vinha a imagem de castelos medievais com grandes cavaleiros e brasões dourados, representantes de cada reino de todas as partes do mundo, reis e rainhas e a corte bailando em seus salões sem fim ao som dos minuetos. Fazia bem aquela sensação!
Enquanto minha amiga não deixava escapar o mínimo detalhe com uma teoria e um profundo conhecimento racional sobre o chão, teto, paredes, ornamentos, cores, vasos, brilhos, formas... eu apenas me preocupava desintencionalmente em reparar aquela casa como um todo (coisa de leigo). Chamo aquele lugar de casa por ser dessa forma, mesmo, que o via e vivia. “Um aconchego aconchegante”, como diria minha sobrinha sempre que ia passar férias na casa de praia da família.
Enfim, começamos nossa via crucis.
Não me lembro muito bem dos comentários de minha amiga. Eu me punha absorto demais no vislumbre de cada obra. Porém, lembro-me perfeitamente das horas em que ela expressava alguma opinião movida pelo sentimento puro. Comecei a notar que todas essas manifestações emotivas que ela deixava escapar eram sempre advindas de fora dela, uma força exterior a ela, como num senso comum. Mas, parece-me que ela percebera tal mecanismo. Explico-me melhor com uma memória que me ocorreu quando admirávamos o último quadro da exposição.
A idéia do evento era contar a história da arte através de pinturas que representassem cada período da história do homem, enquanto artista expresso e assumido. A última tela, no entanto, é que me fez confundir a minha história com toda aquela apresentada e idealizada pelos organizadores da exposição.
Era uma espécie de mosaico. Com certeza representava um desses movimentos artísticos, mas não sei dizer qual era. A tela só possuía variações de branco e preto. Cinzas claros, cinzas escuros, brancos encardidos... negros e brancos, dos mais claros e ofuscantes aos mais turvos e mortos. Havia formas redondas, quadradas, retangulares, mas que se juntavam em meio àquele pedaço de pano e constituíam outras formas sem nomes e algumas que lembravam sombras, vultos ou nuvens que, como quando criança, faziam-se por assemelhar a algum bicho. E foi uma nuvenzinha dessa, no quadro, que me fez lembrar um dia, quando criança, sentado à sombra do salgueiro chorão. Eu passava as férias na casa de minha tia e o único lugar que me deixava viajar em meus joguinhos, quase oníricos, infantis era exatamente sob a sombra do salgueiro chorão. Era, de fato, aconchegante. Ali eu criava meu mundo e minhas estórias com os animaizinhos que as nuvens desenhavam para mim lá em cima, no céu. A última figura que as nuvens fizeram nesse dia, que eu me lembre, foi um bebê. Minhas vistas o acompanharam até que fosse ficando menor... e se distanciava... e foi diminuindo... diminuindo... diminuindo...
Despertei num outro lugar. Um descampado enorme com um gramado que mais parecia um tapete real. Continuava sendo o quintal da casa de minha tia, mas era muito maior do que eu percebera, até então. E foi olhando pra baixo, ao meu lado, que notei uma árvore que ainda começava a brotar do chão. Era o salgueiro chorão, ainda nascendo; brotando da terra onde se ocultara durante algum tempo. Lembro-me de ter deitado sobre a grama daquele novo quintal e de ficar admirando de perto, bem de perto, o salgueiro que começava a crescer do chão. Como uma criança que pela primeira vez abre os olhos e se depara com um mundo até então nunca visto, dei-me conta de que não havia cor ao meu redor. Era um sonho em preto e branco. Eu também era parte dessa mistura e a única coisa que tinha cor era o salgueiro que passava da sua infância para sua adolescência num ritmo acelerado, mais acelerado que o comum. À medida que ele crescia e, agora, começava a conseguir produzir sombra e proteção a quem nele se abrigava, algumas cores começaram a nascer. Logo o gramado incorporava-se de verde. O mesmo verde das folhas do salgueiro. A terra tingia-se do mesmo tom marrom do tronco do chorão que, nem de longe, transparecia qualquer sinal de choro ou de tristeza. Tudo que se aproximava dele parecia ganhar mais vida. E tudo que tinha vida se aproximava dele. Ninhos, sons, cores, formas sem nome, luzes, vidas... até que tudo ao nosso redor havia sido tomado da energia liberada pelo salgueiro chorão. Deitei e me apoiei em sua base, protegido em sua sombra, e uma folha que se precipitara de um de seus galhos começara a me incomodar o rosto. Foi então que despertei sob a sombra do salgueiro, com Rex, o cachorro de meus tios (e meu grande companheiro), lambendo meu rosto, avisando-me que o almoço estava servido.
E, exatamente nesse instante percebi, no museu, que minha amiga estava balbuciando algo em meu ouvido. Só me recordo do final da frase que ela disse:
- ... você não concorda?
- Sim... claro! Estou acordado! – disse eu, ainda sob efeito onírico.
Ela ainda virou-se para mim com um olhar sobressaltado, mas preferiu não dizer nada. Voltou-se para frente, deu mais uma olhada na tela, suspirou e proferiu em baixo tom:
- Gostaria de voltar aqui amanhã, novamente. Você voltaria comigo?
Um mês depois ela ganhava seu primeiro prêmio jornalístico e eu, pela primeira vez em minha vida, freqüentava aulas de História da Arte.

Paz

Paz que me ronda,
Paz,
Que me sonda
Em voltas tão longas,
Que não me toca
O corpo,
Perde força,
Jaz.

Paz que, presente!,
Louca por assim se fazer,
Não se faz,
Não me afaga,
Nem me traga;
Trisca,
Chama colo:
Pais!

E,
só assim,
então,
Autopacificarmeei.

"Vita Longa" Ou "O Ciclo"

... e assim teve início um novo ciclo:
Maria e José. Testemunhas não faltavam àquele momento. Cúmplices de duas almas ainda mais cúmplices entre si, que ali entregavam-se às leis que não se podem ver; as mais sagradas e talvez as únicas que se possam conceber como tal. De joelhos. De mãos dadas. De costas para todos e à frente de todos. De frente e à mercê dos mandamentos e da presença espiritual a que se comprometiam carregar consigo para o resto de suas vidas. José era só sorrisos. Maria também, embora pudesse estar pensando em sua “vida”. Era assim que ela o chamava antes de conhecer José. Mas, ali estavam. Sinceros como sua fé poderia ser. Unidos e sem espaços, completos como uma aliança o é: o primeiro casamento.
Tão verdadeiro era João. Fruto da ex-desventura de Maria. Sério, fixo e quase imóvel. Talvez pensasse na estranheza e, ao mesmo tempo, na grandeza daquela cruz a ele oferecida: o primeiro pai.
Muitas primaveras, alguns invernos e três quartos de ano. Para João a resignação e, só então, a não dúvida do que ali a natureza fazia brotar. Para Maria e José a certeza: o primeiro filho.
Alguns anos se passaram e um dia receberam uma visita. Eram os padrinhos, ou testemunhas, de seu casamento. Também tinham uma filha. Por homenagem, também chamava-se Maria. Trouxeram uma lembrança ao Pedro, o filho do casal. Era um conjuntinho de médico com toda aquela aparelhagem que é vista em um consultório. Maria e Pedro brincavam ao canto da sala. Padrinhos e casal conversavam às gargalhadas que só a saudade é capaz de fazer renascer. E, detrás da cortina, um quase adolescente observava atento à cena que as duas crianças se preocupavam em ensaiar, num misto de inocência e instinto: o primeiro beijo.
As fraldas, então, foram abandonadas. Em seu lugar gírias, cigarros e ideologias. Maria e Pedro já completaram dezessete anos; quase dezoito. Em meio a sonatas e baladas destoantes, uma noite fez-se especial. Uma nova melodia ecoando pelos corpos. Uma transformação; uma mutação, na verdade. Todos os sentidos rendidos: o primeiro amor.
Naquele altar Pedro. Logo atrás Maria, José e João. Sentados, juntos e separados ao mesmo tempo. De corpo faziam-se presentes, mas, de espírito eram distintos. Cada um trazia o passado consigo àquela Igreja. Quantos mundos existiam naquele instante? A única certeza que tenho era a presença de Maria no mundo interno de Pedro. Fora e sempre será: seu único amor.
“Por onde será que ela anda?” – pensou Pedro.
De qualquer forma, não adiantava mais. Era tarde. O ciclo dela cessara para Pedro e para qualquer outro que ali estava. Foi-se. Fugiu ou simplesmente desistiu. E quem ficou tentou adequar-se a um plano sobressalente, assim como Pedro: seu segundo casamento.
Pedro também pensou em sua “vida”. Resolveu levá-la junto. Não desistiu e nem ajoelhou-se diante dela. Sem esforço, sem pressa... um sorriso e o choro: seu segundo filho.
Uma segunda chance de viver: assim quis Pedro. Assim o fez e viveu até o dia em que recebeu uma carta de seu irmão João, quando percebeu que talvez precisasse de um fôlego a mais.
Chegou pela manhã naquele quarto de hospital. Seu irmão o recebeu, conduzindo-o ao leito onde seu pai repousava. Era um dia de sol. Era primavera. Conversaram sobre todas suas vidas. Juntos. Riam e choravam. Sentiam-se unidos...para sempre.
Durante a noite, enquanto cochilavam, foram todos acordados por José ao mesmo instante. Todos em pé, rodeando a cama ouviram suas palavras; sua ode à vida: “sempre os terei em mim. Amo vocês!”
Deu seu último sorriso...
...e assim teve início um novo ciclo:
Maria... José...: completos como uma aliança o é.

Ossos do Ofício ou Loucuras de Ofício

Cada louco com sua mania



Quando César formou-se em medicina, não sabia que seus anos de residência renderiam boas risadas no futuro. Parecia menos provável, ainda, pela opção que tomou enquanto especialista: virou psiquiatra.
Num daqueles hospitais-dia, era rotina o doutor César chegar às sete e meia da manhã, todos os dias. Comum, também, os plantões aos finais de semana em outro hospital no centro da cidade. À base de café e cigarro, chegava à conclusão de que, naquele ritmo, era ele quem precisaria de um cuidado logo, logo!
Mais um dia típico, e lá ia doutor César com seu passo apressado e maletinha preta na mão direita, rumo à sala de atendimentos.
Naquele dia, a primeira consulta era o Seu Nério.
Este foi diagnosticado havia três anos, com traços de esquizofrenia ou algo que o valha. Não sei, direito, o que o César me disse. Sei que ele apresentava alucinações visuais e, comumente, conversava com o espírito desencarnado de um centurião da Roma Antiga e tinha o “rei na barriga, só porque era um dos preferidos do imperador”. Era isso que o Seu Nério falava do defunto, sussurrando, quando este não se fazia presente.
Após esse tempo todo de tratamento, o doutor César achava que já era hora de deixar o Seu Nério cuidar de sua vida sem as medicações. Estava tudo às mil maravilhas e o prognóstico não poderia ser melhor.
- Bom dia, Seu Nério! Como foi a semana?
- Tudo bem, doutor! Não tenho sentido mais nada e consegui um emprego essa semana, de garçom, num restaurante chique lá do centro.
- Mas que coisa boa! Então quer dizer que já está pronto para receber alta? É isso?
- Como assim, doutor? Acha que estou bom, já? Não preciso mais usar os medicamentos?
- Calma! Deverá usar, sim, a medicação, por um tempo. No entanto, vou diminuir a dosagem e, a partir de agora, nos veremos menos vezes. Ficará livre do tratamento em breve e não precisará mais passar as manhãs aqui no hospital. Poderá voltar à vida normal. Que acha?
- Que maravilha! Acho que estou pronto, sim!
- Ótimo, Seu Nério! Vou preencher esse formulário e... pronto! Agora é só entregar pra secretária e estará livre. Boa notícia, Seu Nério? Feliz?
- Sim, doutor! Por demais! Queria agradecer por tudo, viu, doutor. Foi muito importante pra mim, nesse tempo todo. Se não fosse o senhor eu não sei o que... doutor, o senhor tá pegando fogo!
O sorriso do doutor se fechou na hora e franziu a testa.
- Como é, Seu Nério?
- Doutor, o senhor tá pegando fogo!
- Mas como você me faz isso? Estou pensando em dar alta e...
- Doutor, o senhor tá pegando fogo!
- Calma! Dê-me, aqui, esse formulário e vamos conversar um pouco.
Mil coisas se passaram pela cabeça do doutor. Questionou-se, inclusive, se estava na profissão certa e que tipo de profissional era esse que dava alta a quem é doido de pedra, o Seu Nero (pensou).
- Doutor, o senhor tá pegando fogo.
E, antes que o doutor se levantasse para pegar o formulário, o paciente se precipitou e saiu em direção a pia que havia na sala, gritando “fogo!”, encheu a mão de água e tacou no doutor. Foi, então, que o César sentiu um certo cheiro de queimado e, de onde, ele não havia percebido, ainda. Olhou à sua volta e nada. Tirou os óculos e, seguindo o fedor, notou que, do bolso de seu jaleco, o fogo já tomava conta. Quase perdeu seu uniforme. Mas, depois do corre-corre e da gritaria toda, foi forçado pela diretoria do hospital a tirar umas férias e viajar. Nunca mais, também, esqueceu-se de colocar o cigarro aceso no cinzeiro em vez de guardá-lo nos bolsos, pensando ser uma caneta; a mesma que dá alta a seus pacientes sãos.

Perguntar Não Dói

Outro dia, conversava com uma amiga que há muito eu não via. É gostoso reencontrar pessoas queridas. Boas novas soam como alento à alma; as novidades. Matamos, um monte, as saudades! Hoje ela está empregada e feliz por ter conseguido um trabalho em sua área de formação (ela é advogada). Lamenta-se do salário mixuruca que recebe, sabendo perfeitamente o tamanho do seu valor. Mas, isso não tira seu bom-humor habitual. Está em paz com sua família. O casamento não tarda em chegar, pelo visto. É só questão de tempo.
Lá pelas tantas era ela quem questionava a minha vida. Daquela época em que nos conhecemos, ela trazia a lembrança de que eu estava solteiro. Não sei por que cargas d’água, mas sua espontaneidade demonstrou-se vacilante por um momento e me perguntou num tom baixo:
- E o coração? Nada, ainda?
Juro por Deus que me senti aquele pai de família que sai de casa segunda-feira às cinco e meia da manhã, rumo à fila de emprego, em busca do seu lugar mais sombreado na vida, ainda que com o salário mixuruca e que, ao chegar em casa, a família reunida na sala, ansiosa pela resposta do homem, não tem coragem, sequer, de pronunciar a palavra “emprego” ou de perguntar se deu certo, e sai somente um “e aí?”. Parece que se evita uma ofensa ou um palavrão pronunciado que pode gerar, no mínimo, o risco de um ataque do miocárdio ao doente em questão, já sabendo que a resposta é um cabisbaixo balançar de cabeça e penoso “nada, ainda!”.
Comecei a rir sozinho e expliquei a ela o que me havia ocorrido naquele instante. É engraçado como algumas coisas parecem tabus. É um cuidado que se tem em certas áreas da vida de uma pessoa, sob a intenção de não expô-la ou abrir uma ferida delicada num coração que pode estar sofrido.
Foi, então, que saltaram às idéias outras situações curiosas e semelhantes a essa.
Há aqueles que se utilizam, como compensação a uma gafe movida por esse tipo de curiosidade “perigosa”, uma espécie de auto-nomeação que justifique o ato. Já conheceu alguém que tenha dito, com certo ar de soberba, algo do tipo “eu sou autêntico!”? Eu já conheci alguns desse tipo e nenhum deles me pareceu tão ávido por autenticidade.
Quem, ao contrário, nunca passou por situação semelhante ao encontrar com um velho amigo que, depois de dez minutos de conversa, pergunta em tom irônico:
- Mas, e vem cá... e aquela vizinha safadinha que você tinha naquela época? Aquela que costumava trocar de roupa com a janela aberta, de propósito, pra quem quisesse ver... tem visto?
Ao que se ouve, como resposta, um seco:
- Eu me casei com ela.
Aí já não adianta mais. A cautela inerente (em teoria) já foi pro saco. Resta o bom senso de se ficar sem graça e calar-se, despedindo-se.
Há, inclusive, os que se seguram até onde conseguem. Foi outro dia que vi um amigo rodeando toco pra perguntar ao companheiro de longas datas acerca de sua ex-namorada:
- ... Gorila, o negócio é o seguinte... tem uma coisa, aí, que tô querendo te perguntar tem tempo... mas, sabe como que é, né... a gente não tem se falado muito mais... a gente tem perdido o contato... sabe... é o seguinte: eu queria saber se você tem notícias...assim, só por curiosidade boba, sabe... mas se você tem se encontrado com aquela sua ex... como é, mesmo, o nome dela?... Aquela altona, muito... simpática... a que quase se casou com você...
- A Nildovânia?
- Isso! A Nildovânia, pois é!
- Ontem eu falei com ela. A gente foi almoçar juntos. Mas essa curiosidade se deve a que?
- Nada! Nada!... Coisa boba, Gorila... (puta merda!)... Mas e vocês... estão juntos de novo? Assim... você ainda... gosta dela... ou não?
- Claro! Ela é muito querida! Mas a gente se trata como amigos, somente. Aliás, ela me disse que tem falado bastante com você, ultimamente, não é?
- Ela falou isso, é, Gorila?... Mas, mas... que mais ela disse?
- Disse que têm se encontrado de duas semanas pra cá. É verdade?
- Bem... é!.. quer dizer...mais ou menos, né... sabe que você é meu amigo e eu não iria fazer nada sem antes saber de você... mas, é... to gostando dela também. Você não se importa, né?
E, depois de todo sofrimento acumulado:
- Vai fundo, Caveira!
A grande questão é que, por mais que a coisa esteja feia, as perguntas sempre aparecem. Elas parecem ser donas de nossos pensamentos. É, sim! Somos, mesmo, escravos das perguntas. E só acontece com a gente, bicho homem. Nunca vi uma hiena, nos documentários da televisão, perguntar ou pedir licença ao “Seu Leão”, pra saber se a carniça já tem dono.
Aí, então, vai uma pergunta a mais:
Que mal há nisso?
Perguntar não arranca pedaços, gente. O que constrange é se o pedaço já foi arrancado. Mas, aí, fazer o quê? Não há mais como colar.

Outra da net

Mais um tirada da internet. Foi publicada no www.ocaixote.com.br . "O Caixote" é uma revista eletrônica que vale a pena dar uma conferida. Agradável, visualmente, e com bastante coisa pra se ler.
O dono desse texto chama-se Fernando Borba e no Caixote há outros contos dele, bem como uma breve biografia.



Julieta
Encontrei a moça meio perdida na praia, olhando para cima as fachadas dos prédios da avenida. Encontrei não foi bem o caso, ela que me encontrou, deu-me um encontrão.
"Desculpe", gaguejou, repondo os óculos. Era uma manhã de carnaval, a praia estava apinhada depois da passagem do bloco 'Segura a Coisa'. Olhou-me como quem tem uma boa idéia e falou: "Sabe onde mora a família Montéquio?"
Era uma pergunta muito fora de propósito. Naquela circunstância, ninguém pergunta a um desconhecido onde mora alguém também desconhecido. Quer dizer, não tão desconhecido, por isso resolvi brincar:
"Montéquio que eu sei é o pessoal do Romeu. Do Romeu de Shakespeare".
Seus olhos brilharam:
"Pois é isso mesmo". Pensei que ela estava entrando na brincadeira e olhei-a melhor. Bem jovem, saia longa, miniblusa fina, sandálias caras, bolsa de couro pendurada no ombro. A pele era alvinha, contrastando com os cabelos negros escorridos ao longo do rosto. Óculos sem aro, de lentes brancas. Até que bonitinha. Muito séria, com um ar preocupado.
"Meu nome é Julieta. Tenho de encontrar os pais do Romeu, pois acho que ele corre perigo."
"Pera lá, Romeu e Julieta? Aqui na praia, e no carnaval? Brincadeira tem hora. Ou será uma troça nova?"
Mas a gata não tinha jeito de quem estava de galhofa. Séria como ela só, continuou:
"Ele está voltando a Verona hoje. Deixei um recado com o Capelão do cemitério, pra dizer que não morri, estou bem, que vinha esperá-lo aqui, mas acontece que Dom Lorenzo teve um ataque cardíaco".
Joguei no lixo a latinha vazia de cerveja e abri outra. A menina era muito convincente, e continuei escutando.
"O veneno que tomei era de mentirinha, mas Romeu não sabe. Vai ficar procurando meu corpo em Verona, vai acabar sendo preso e enforcado. Mas os pais dele são importantes, têm relações na Embaixada, podem interferir. Ah, minha Santa Madonna!"
Achei tudo aquilo um despropósito sem tamanho, mas àquela altura parei de me preocupar com a realidade. "Que lindos olhos azuis", pensei. "E que boquinha gostosa.
"Bem, se você acha que os Montéquio moram por aqui, é só procurar o número deles na lista e ligar. Tenho uma lista e um telefone no meu apartamento, é naquele prédio ali em frente."
Julieta olhou para o outro lado da avenida e aceitou meu convite. Por sorte não ia ter ninguém em casa pelo dia inteiro. Subimos e levei-a para a varanda. Peguei o uísque, enchi dois copos e lhe ofereci um.
"Obrigada. Só tomo Amaretto dell'Orso, e em dias de festa."
Sentamos na varanda. Ela recostou-se e cruzou as mãos no regaço, como uma nobre da Renascença.
"Ô, sinto muito" eu disse. "Quanto a ser dia de festa, hoje é exatamente isso para mim. Conheci você e vou ajudá-la."
Mas Julieta estava apreensiva e queria telefonar. Fui na sala apanhar a lista e o telefone. Enquanto eu bebericava meu uísque, ela folheava o volume e dava alguns telefonemas. Eu embasbacava para suas mãos esguias, seu rosto bonito e sua voz murmurando docemente em italiano.
Uma pombinha branca entrou na varanda, deu voltas e pousou no balde de gelo. Deus me perdoe, mas juro que ela piscou o olho para mim. Depois apareceu um cavalo com arreios dourados, cumprimentou-me com um aceno de cabeça e falou:"Sou Incitatus, Senador romano. Mas meu nome de batismo é Cornélio".
Ri tanto que quase sufoquei com uma golada de uísque.Minha última visão de Julieta foi quando ela levantou da cadeira e andou para a sala.
Quando acordei, o sol tinha sumido e as lâmpadas da orla estavam começando a acender. Uma bruta dor de cabeça me atormentava."E Julieta?" lembrei.
A caminho do banheiro, notei que meu quarto estava uma bagunça. Nas gavetas desarrumadas da cômoda faltavam os cheques, os cartões de crédito, todo o dinheiro e o relógio de ouro que foi do velho. Corri feito um desenganado para o guarda-roupa e procurei em vão a caixinha de metal com os dólares e as jóias de minha mulher.

O Melhor Amigo

- Maninhooo!
- Que foi?
- Cachorro é com “xis” ou com “ceagá”?
- Como é que é? – aproximou-se o irmão da mesa onde sua irmãzinha fazia o dever de casa. Uma redação sobre “o meu melhor amigo”.
- Ih, minha irmã! Eu não sei, não!
Parou por um tempo, olhou o papel de um lado, de outro. Tudo isso em silêncio. Parecia um médico que se mantém absorto na análise de um paciente, sem pronunciar uma só palavra, enquanto o cliente aguarda, ansioso, pela cura proferida pelo doutor. Alguns, ao invés de médico, sentem-se num tribunal e, nesse caso, a cura cede lugar ao veredicto:
- Ah, escreve cão que dá no mesmo! – e foi saindo.
Sua irmãzinha já esboçava um sorriso de agradecimento no rosto, quando foram surpreendidos por um berro do pai que lia o jornal em sua poltrona:
- Volte aqui, moleque!
Viraram-se, de uma só vez, para o pai que já não mais tinha o rosto disfarçado em folhas de manchetes do dia.
- É assim que você ajuda a sua irmã, é? Esse é o exemplo que você quer dar a ela? Preste atenção, menino! Ela pediu ajuda a você porque tinha dúvidas no dever. A dúvida era sobre uma palavra e olha só o que você responde a ela! Que ajuda foi essa? Quer dizer que se ela pedir ajuda a você algum dia, é assim que você vai ajudá-la? Ela é a sua irmã, rapaz! Sua obrigação era sentar-se com ela e, já que nenhum dos dois sabe como se escreve, que procurassem num dicionário. Você está de castigo! Vá para o seu quarto e fique lá até eu mandar você sair.
- Mas, pai...
- Não tem mais nem menos. Vá agora e...
- Júnior... você está exagerando! – manifestou-se a mãe dos garotos.
- O que?! Você vai dar razão a eles agora, é, mulher?
- Não é essa a questão, Júnior. Só não há motivos para esse escarcéu todo. Ele tentou ajudar do jeito dele. E até foi criativa a solução dele. A gente não pode negar isso.
- Criativa, vírgula! Ele tinha era que esclarecer a dúvida dela e, não, tentar sair da forma que ele achou mais conveniente. E não admito que você me contrarie na frente de ninguém! – e curvou-se de uma vez para frente, dando um soco na mesa, derrubando o arranjo de flores e machucando a mão já prejudicada pela partida de vôlei da sexta-feira com os amigos.
- Ai, minha mão!
- Ai, meu arranjo!... – já soluçava a esposa, enquanto tentava acudir as flores, como se a tivessem ferido um filho. – Tá vendo o que você fez, Júnior?! Culpa sua, Júnior! Quem mandou você ser grosso desse jeito, Júnior? Precisa disso?... Hein, Júnior!
- Culpa minha, uma ova! Culpa sua! Da próxima vez você vê se me apoia em alguma coisa. Aquele moleque, em vez de ajudar a irmã, fez o que fez. Não ajudou no que ela queria e você ainda vem dizer que a culpa foi minha?! Paciência tem limite! Ai, minha mão! – a dor estava insuportável o suficiente para diminuir o tom de voz que, até então, ele insistia em sustentar.
- Eu não vou ser complacente com esses seus métodos, Júnior! E deixe eu ver essa mão aí.
- Cuidado, cuidado... ai! Tá doendo muito!
- Calma aí que eu vou buscar um gelo. Deixe sua mão quietinha que eu já volto.
Parece que o espaço da calmaria ainda estava preservado naquela casa. São as águas que se agitam conforme as nuvens ficam mais negras, mas que sempre cedem seu lugar ao sol que é mais forte.
Toca o telefone.
- Alô! – atendeu o Júnior, num tom ríspido.
- Mãe?! Desculpe, mãe! É que eu estou nervoso!
- Ah! Foi seu neto que causou essa confusão toda. Você acredita que a irmã dele pediu ajuda no dever de casa, perguntou se cachorro era com “xis” ou com “ceagá” e ele, por não saber, mandou que ela trocasse a palavra cachorro por cão porque “...dá no mesmo”? Veja se pode uma coisa dessa! E ainda tem apoio da mãe! Deve ter sido do exemplo dela que ele aprendeu a ser assim. Absurdo...
- O que, mãe? A senhora está passando mal?
- Mas, como assim, dor no peito?
- A senhora tomou o remédio?
- Aquele que o médico passou, né, mãe? Ora, qual!
- Mas, como é que eu vou saber? Ele passou foi pra você, mãe!
- Mas, mãe...eu... mãe... calma... escuta ... calma... mãe...eu não estava com a senhora no dia da consulta, mãe! Mas, que coisa!
- Não estava. A senhora não se lembra que foi no dia do conselho, eu deixei a senhora lá e depois fui buscá-la?
- Então, mãe! Foi isso, mesmo.
- Faça o seguinte, mãe... quais foram os remédios que ele passou pra senhora?
- E há quanto tempo a senhora não toma nenhum deles, hein?
- Ah, então é por isso, né? Tomou só no dia da consulta. Isso tem quase um mês, mãe! A senhora não se cuida?
- Calma! Calma! Respire fundo, senão piora. Assim!... Desculpas.
- Faça o seguinte, mãe: tente lembrar-se, mais ou menos, qual era o remédio pra qual problema. Se não lembrar, tome qualquer um. Mal não vai fazer, né, mãe?
- Então!
- Ou, melhor: tome os três. Se não melhorar a senhora liga de novo que a gente vai ao médico, tudo bem?
- Tá bom, então, mãe. Um beijão. E vê se cuida dessa saúde porque já não tem mais idade pra brincar com ela!
- Um beijo, mãe. Tchau.
Nesse instante, totó entrou correndo e latindo pela sala, abanando o rabo para a garotinha que aguardava, sentada, o desfecho daquela história toda. Saíram da sala e foram brincar no quintal.
O garoto ainda esperou a mãe chegar com o gelo para seu pai. Depois que viu que estava tudo sob controle, saiu e foi brincar em seu quarto.
- Quem era ao telefone, Júnior?
- Minha mãe.
- E o que ela queria?
- Nada de mais! Passou mal, mas já está tomando os remédios, direitinho.
- Então, dê aqui essa mão pra eu cuidar.

Terapia de Choque

Havia três anos que eu me privava de qualquer momento de paz em minha vida. Quatro empregos concomitantes e, por vezes, queixava-me do tempo, como se fosse ele o culpado de minha notória incapacidade de lidar com o dia-a-dia. Posso incluir também o noite-a-noite e o madrugada-a-madrugada, pois não raros eram os momentos em que até meu jantar vinha regado a trabalho. Um restaurante situado a duas ruas de meu humilde apartamento sempre fora encontrado vagando nos desejos manifestos de minha esposa. E lá íamos nós ao bendito restaurante. Minha esposa sempre gostou do local. Era perto, portanto, prático; agradável, portanto, passível de prazer; calmo, com música ao vivo guiada por um maestro ao piano, fazendo-me lembrar das noites de lua-de-mel em Paris durante o verão de oitenta e quatro. Pessoas sussurrando em suas mesas com seus amigos, com suas famílias, esposas ou amantes, casais de namorados que, notava-se na grande maioria dos casos, eram pares recentes. Mas quem nunca quis impressionar sua namorada nos primeiros encontros? Desde a idade das pedras isso é de praxe. Parece até filogenético! Se não é com demonstração de coragem como os nossos ancestrais macacos o faziam, era tentando cravar o coração da pretendente com exacerbação de bondade ou uma transparência infinda de companheirismo e compreensão como outros tentavam agir, ao menos no início do relacionamento. Julgo que esta não seja uma tática tão segura assim. A maior prova de minha tese também vem da mais tenra história da humanidade. Lembra-se do que Adão fez por Eva no tal paraíso? Até imagino a cena:
– Adão, vem cá! – em tom desafiador e provocativo – ... se queres mesmo demonstrar teu afeto por mim, então prova dessa maçã proibida por nosso Criador, em sinal de tua admiração, respeito por mim e da minha importância em tua vida.
– Eva, meu amor... fez Deus o mundo em seis dias e, de mim, tirou uma costela para trazer à luz a maior e mais bela de todas as criações. Luz às trevas em que eu vivia Ele trouxe. E o que são seis dias comparados a um único minuto ao teu lado, minha flor? Abro mão de minha eternidade pois cada minuto, cada segundo contigo é eterno e o bastante para a minha existência. Da mesma forma condeno a todos os que virão como fruto do nosso amor, se assim queres. E brindo esta maçã a ti, minha eterna deusa.
Enfim... creio que tenha sido mais ou menos assim. Só depois de perceber que a coisa tinha sido séria é que Eva tentou voltar atrás e dizer que estava arrependida pelo que tinha feito a ele e, em sinal de arrependimento e de uma consciência deveras pesada, iria agir da mesma forma que Adão houvera feito, comendo o outro pedaço da maçã.
Mas isso não tem importância. Da mesma forma que a demonstração de cumplicidade afetiva, demonstrar seus sentimentos com atos de coragem pode ser arriscado. Vai que o sujeito leva uma surra daquelas!
Felizmente, nunca presenciamos nenhuma cena semelhante naquele restaurante, embora estar lá, naquele local, me deixasse um pouco aflito, comumente.
Por ter quatro empregos como empresário, era fácil encontrar clientes, empregados e bancários (principalmente) que me trouxessem à tona todo o clima de trabalho. Cobranças, investimentos, ações, aplicações, novidades do mercado, taxas de juros, over-loop, economia mundial, globalização... Era um terror!
O bife à cavalo que minha mulher pedia lembrava-me a Argentina. Muitos eram meus negócios com a Argentina e sempre tinha de tentar driblar a política adotada por seu comandante. Mais um ponto para o trabalho, que vinha a galope.
O crépe suzette da sobremesa lembrava-me a Suzana, uma ex-empregada de uma das empresas em que eu trabalhava, que havia movido uma ação judicial contra mim, acusando-me de assédio sexual. Quanta dor de cabeça essa mulher me trouxe! No trabalho ninguém mais confiava em mim. Fora do trabalho, idem. O que dizer de minha esposa! Quase nos separamos. Durante quase dois anos meu nome figurava na mídia como uma pessoa inescrupulosa, sem caráter, desprovida de moral. Ao menos, acabou bem essa história. Fui julgado inocente e, com uma semana após o julgamento, muita gente já nem sabia mais quem eu era.
As mesas do restaurante, por vezes, reportavam-me à reunião ocorrida naquele dia.
O cardápio me lembrava uma tabela de índices de investimento, cheia de números, de formas, gráficos ascendentes e descendentes. E ainda havia o dinheiro que iria embora do meu bolso ao final da decisão da aplicação a ser executada.
Não havia uma única coisa naquele lugar que não me fizesse lembrar do trabalho.
Em casa, muitas foram as vezes em que acordei no meio da noite com minha esposa tentando acalmar meus sonhos, ou melhor, pesadelos. Eram as logomarcas das multinacionais que corriam atrás de mim com suas balanças em mãos, a fim de me atacar. De repente um abismo no meio do deserto e lá ia eu, caindo em um buraco que não tinha mais fim, vendo minha vida passando por mim à medida que eu caía. Minha mãe advertindo que sempre havia dito para eu nunca mexer com empresas. Meu pai me batendo. Minha esposa reclamando. Às vezes eu me via sentado em um lugar deserto e, do nada, me surgia o "coisa-ruim", todo de vermelho, com chifres e uma cara que não me era estranha. A única coisa que ele fazia era rir de mim e dizer umas meias-palavras ameaçadoras. Seu sotaque também era familiar. Até hoje não sei bem quem ele me fazia lembrar mas, com toda a certeza, era ele quem mandava naquele inferno e que, a cada dia, tinha mais cara de inferno.
Resolvi um dia que deveria procurar ajuda. Já não suportava mais toda aquela pressão e mal-estar afetando não só a mim, mas àqueles que estavam perto e acabavam sofrendo por tabela.
Recorri ao auxílio médico.
Na sala de espera foram vinte minutos de agonia. Para mim, todo aquele tempo era um dia totalmente perdido. Impossível não me preocupar com os afazeres deixados de lado por conta daquela consulta.
Agonia quando entrei e indignação ao sair do consultório. Apenas três minutos... três... de conversa e o infeliz do médico me encaminha ao psicólogo. Pelo amor de Deus! E eu lá tenho tempo de procurar essas frescuras?, pensei.
"Relutância passiva, pouca mudança e vida inativa", dizia meu pai.
Deixei para lá. Quatro meses e nada de procurar ajuda. Achava um absurdo perder tempo deitado num divã, ou sei lá o que eles utilizam naquilo que chamam de sessão terapêutica. E eu estava sobrevivendo bem até o dia em que tive um ataque de nervos durante a madrugada, em casa. Sonhei que o mundo havia acabado e que eu estava num vazio enegrecido. Era meu. Essa posse, no entanto, não me servia. Eu não tinha chão para pisar, não tinha o que pegar. Nenhuma posição me dava equilíbrio. Não enxergava nada a não ser a escuridão. O som que ouvia era um vento infinito e uníssono, monótono e sem aparência alguma. Caía como um pássaro sem asas e o solo nunca chegava. Tentava me mover e manter-me em uma posição confortável, mas era impossível. Cheiro, só de meu desespero à medida que despencava do céu infinito. Fria aquela queda. Gélida em todos os sentidos e em todas as direções. Meu último movimento foi tentar abraçar-me para, ao menos, tentar diminuir a febre que tomava conta do meu corpo naquele despenhadeiro sem fim. De repente a água. Um estrondo do meu corpo caindo num mar, num oceano sem vida e também medonho. Todo o ar do mundo havia acabado e eu tentava sobreviver com o pouco fôlego que me restava. Foi então que ouvi uma voz tranqüilizante que a cada segundo ficava mais próxima e mais nítida aos meus ouvidos. Ainda tive a inspiração de deixar guiar-me por ela. Aos poucos abri os olhos e percebi minha esposa ao meu lado, tentando trazer-me de volta à consciência. Em meu rosto, sua mão. Em seu rosto, um sorriso preocupado.
Naquele dia percebi a tal "relutância passiva" do meu pai atuando em mim.
Decidi procurar auxílio mais uma vez e a indicação outrora feita pelo médico me vinha à lembrança. Marquei minha primeira sessão terapêutica.
Lá vou eu, caminhando pela rua. Mais um dia de jornada em direção ao centro da cidade.
Quando dei por mim, estava a dois quarteirões além da clínica psicológica na qual deveria ter entrado dez minutos atrás.
Retornei os dois quarteirões e dez minutos depois estava eu na tal clínica, vinte minutos atrasado:
– Bom dia! – dirigindo-me à recepção.
– Bom dia! Posso ajudá-lo? – respondeu a moça, com um sorriso sincero.
– Hoje é minha primeira consulta e estou atrasado vinte minutos...
– Ah! Senhor Abdala, certo?
– Sim. Sou eu. – Tentei, mas não consegui disfarçar minha sem-graceza.
– Por favor! Queira acompanhar-me. O doutor Afrânio está esperando pelo senhor.
Segui-a pelo corredor até a porta do doutor Afrânio. Aguardei a moça anunciar-me e, então, apareceu-me um senhor baixo, de mais ou menos quarenta anos, gordo que, notava-se, matava o tempo de minha espera mastigando e ainda saboreando uma barra de chocolate cuja embalagem encontrava-se sobressaltada numa cesta de lixo. Deu uma última engolida e estendeu-me a mão:
– Como vai? Tudo bem? – Tentou ser simpático. – Queira entrar, por favor!
Se estivesse tudo bem eu não o estaria procurando, claro!, pensei. Mas respondi com simpatia compatível:
– Obrigado! – e acomodei-me em uma poltrona que ele havia apontado.
E assim começou a primeira das várias sessões que mudaram minha vida. A primeira impressão que ficou logo nesse nosso primeiro contato perdurou até o dia seguinte: raiva. Pensei em nunca mais aparecer por lá. Além do chocolate e da falta de sensatez em sua primeira pergunta, durante a sessão ele disse algo que incomodou bastante. Só fui entender o significado daquilo após um dia de reflexão e muita conversa em casa, fatos inusitados o bastante para não passarem desapercebidos.
Assim que falei de meus hábitos diários, desde a alimentação ao sono, passando pelas atividades físicas e trabalho, o infeliz virou-se para mim e soltou o seguinte comentário:
– Mas também, comendo tanta porcaria, dormindo mal, atrofiando o corpo com uma vida sedentária, deixando sua família em segundo plano e você em terceiro, só podia mesmo sentir-se esse lixo! – E gargalhou num si bemol estridente e alto, curvando-se para trás em sua cadeira.
Ô ódio que me deu!

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Há, sim!

Há coisas que se diz,
assim como alguém que se mostra.
Há coisas que o tempo é quem mostra,
assim como um dia gris.

Há coisas que se calam pra sempre;
aquelas que se vão com o vento.
Há muitas ainda inânimes;
escondidas em segredo, ao relento.

Há, ainda, as que eu sei e explico;
ex-ato solto no ar.
Há outras cuja lógica não sei,
nem insisto.
Só sei que há.

Assim Seria... Maria Faria Nascimento

Mariazinha, certa vez, tadinha!, teve uma desilusão enorme, daquelas que derrubam qualquer um. Depois de muito sofrer, prometeu que não iria mais se entregar às dores que se vivem vivendo, simplesmente. Negou todas elas e se forçou a aprender o ofício de uma vida de cabeça erguida. Cresceu, então, olhando pro sol. Só não esperava, tadinha!, que um dia ficasse cega.

Às Vidas

Meu pequeno segredo é saber que tudo que vivi é vivo só na memória. As fotos e quadros que pintei só conseguem sorver uma parcela ínfima do que vi de minha história. É hora de tentar contar o que não consigo, para saber se, vivo, tenho chance de avivar alguém.
E lá vêm... minhas vidas:

Para um menino, que sempre sorriu quando disse tchau, meu primeiro abraço. E um sorriso lúcido que não finda, à mocinha tímida de tão linda que é.
“Mulher, volto logo! Não pense que vou deixá-la tão cedo. E, ainda que toda distância deixe medo no espaço vazio que se forma entre nós, saiba que é passageira essa sensação de frio. Em breve retorno para aquecê-la.”
“Pois vai logo... e volta logo para que não me encontres congelada quando voltares.”
Assim foi e sempre será.
Assim, fui.
Conto quando chegar.

“Mãe, o papai demora dessa vez?”
“Entra e vai dormir. A noite ajuda o tempo a andar mais rápido. Aprende: se queres que algo bom te aconteça logo, de noite pede a Deus pra que descanses muito. É assim que no outro dia vais aproveitar muito mais o que tanto querias.”
... “Sinto falta do papai! Vou pedir a Deus que só me acorde quando ele chegar.”

“Mamãe, também vou pedir a Deus para que eu durma até o pai voltar. Só estou pensando que, se Ele aceitar meu pedido, vai ser um pouco doído o zero na prova que a professora vai dar.”
“Deixa de ser sabichão! Aprende tu, agora, então: sonhos são bons e a gente deve sempre tê-los. Mas não te esqueças de que céu azul só pode ser visto por quem tem os olhos abertos. Abre os teus e vive.”

Se tudo foi assim, não sei. Mas, para mim o foi, e me basta!
Enquanto todo mundo dormia, era eu quem me esforçava para manter os olhos acesos. Qual languidez me consumia! Êta Jesus! Só, mesmo, a Sua luz!

“As crianças já dormiram, sim. E me preocupo mais contigo. Sabes o tamanho do perigo que é viajar a essas horas, sozinho e sem alguém pra conversar.”
“Sei disso. Tu, também, me trazes saudades. Sabes que, por mim, estaria junto. Bem que dava pra deixar isso pra depois. Mas, tem gente que insiste numa coisa e não há quem tire da cabeça.”

E assim eu ia. Tirando saudade e melancolia, meu destino dependia do que me aguardava do outro lado. E este não estava em minhas mãos.
No caminho, parei várias vezes. Em dois dias de estrada fiz parceiros, camaradas, e até uma cigana que jurou que não engana ninguém, e nem cobra por consultas há mais de vinte meses:
- E qual é a lógica dessa sua razão?
- A mim foi dado um dom. Se veio de graça, que eu o use como tal. Coisas assim não se pagam. Nem se pode aceitar um agrado. Alimento-me dos sorrisos de quem me procura e confia.
- Que lhe diz, então, o meu destino?
- Ele está lá. E me aparece sorrindo, não como pilhérias, mas como acalanto.
- Pois, é tudo de que preciso!
- Então vai... saberei se precisares de ajuda. Não sou exatamente como pensas. Mas, não te assustes. Também dependo de você.
Estranho, heim! – pensei. Será que toda cigana tem que atiçar calafrios, também?
- Não te preocupes. Todos estamos ligados. Não disse nada pra deixar-te cabreiro. Vai em paz.
E fui!

Há dois dias que não dás notícia, homem! Há algo de errado, sinto! Minha mãe sempre rezou que acordar em plena madrugada com coração acelerado e peito apertado é sinal de sofrimento de quem se ama. "E, pensar nele, nessa hora, não foi nada confortante."

“Mamãe, sonhei com papai esta noite. Havia um anjo bem lindo, que segurava o papai, sorrindo, e pediu pra eu beijá-lo no rosto.”

“Não entendi o motivo de mamãe ter chorado com seu sonho. Ela está chorando até agora. Será que é algo ruim?”
“Não sei! Será que fiz algum mal ao papai? Juro que se eu pudesse, pediria a Deus pra tirar esse sonho da minha cabeça. Até peço, agora mesmo, pra que eu esqueça. Pra não ver papai sofrer.”
“Acho que sonho é sonho. Não atrapalha. E a gente está é acordado. Não precisa chorar, também.”

“Um bilhete?! Que será?”
“Mulher, sabes que há alguém muito especial precisando de tua ajuda. Confia! E usa todo teu amor por essa pessoa no dia de hoje. Valerá usá-lo assim.”

“Nunca vi a mamãe usar de tanta fé, e por tanto tempo, rezando!”
“Nem eu!”
“Venham comigo, meus filhos. Meu coração me diz que amanhã a gente saberá que valeu.”

“Pois, sim, mulher! Foi tudo melhor do que a gente imaginava. Sinto-me leve! E bom poder chorar sorridente, até por ter certeza que, nessa vida, somos nós os mais felizes do mundo. Foi por sentir teu amor tão presente, que nossa vida verá mais nuvens, estrelas, paixão e nascentes. A ti, meu beijo e um até logo!"
E assim, voltei!

O sorriso do menino companheiro continuava lá.
A timidez da mocinha amada continuava lá.
E o colo e coração belos de quem tanto zelou por mim, também continuava lá, quente, aquecido, como ninho aconchegante de quem tanto quer bem aos seus amores.

“ Este foi o bilhete. Sem assinatura, nem caligrafia conhecida. Quem o fez, será?”
“Um anjo, meu bem! Um anjo!”

E para quê saber quem é quem, nessa vida? Na partida, levo só meu arquivo pessoal. Às vezes, o mais importante não é quem, nem o quê, mas o como. E esta aqui é a minha vida. Devo tudo a ela. Ah, se ela não me deixasse ser o grande manco que sou! De tudo, o mais importante é saber que não se é perfeito e, ainda assim, ter respeito de quem mais me vale. Ela me foi dada; e por inteira. E inteira há de ficar. E se me for partida, encontro-me com o destino, outra vez.

Como Ler Um Poema?

Quantas formas diferentes
há de ser ler um poema?
Se digo que “te amo”
ou que amo você,
quem saberá distinguir
amor fraterno de amor eterno?
Quem libertará as diferenças iminentes?

Se peço para termos calma,
não entenda como um grito
ou ordem ao seu desespero.
Posso, apenas,
como um pretensioso amante,
querer afagar sua alma
ao me entregar por inteiro.

Quando digo: vá com Deus!
É claro que uma despedida se encaixa.
Mas, para sempre?
Por que mandá-la ao léu?
Lamento não possa ver meu sorriso,
cujas letras não desenham num papel.

Se rabisco um não
ou um não
ou um outro não,
quem traduzirá seus sons?

Se arrisco que quero,
que quero
ou que quero!,
como filtrará meus tons?

É que, se posso encantar quem me vê,
se posso enganar quem me lê,
mistério, atenção e beleza
podem ser alguns de meus dons.

E se se apela pro argumento do contexto
para dar forma ao que numa folha se mostra,
um monólogo seria o risco.
Será que assim me esqueceria?
Minha opinião... desconsideraria?

Talvez o maior segredo,
aquele que se pretende,
seja entender que somos dois:
Eu, você... a gente!
Saber que escrevo minha vida,
assim como respeito a sua,
que é só você quem vive;
é só você quem sente!

Sendo assim, diga-me,
como alguém que se rende,
como você nos lê?
Como você nos entende?

Carta Sobre Um Livro

O livro que me deste? Não, ainda não o li. Vou até o meio, mais ou menos, e depois paro por um tempo. Tempo... metade... parecem incompatíveis mas complementares, não é verdade? Sempre me vem a vontade de lê-lo. Mas é preciso retomar o desejo do início, pois simplesmente esqueço. É! O tempo realmente faz isso com a gente, desde o começo. Parece um vício, não é? Parece pão. E água. Quem não precisa? Todos alimentam-se disso. Isso é vida! Vida, então... será um vício?
Por que não o li? Não sei dizer, ao certo. Talvez pelo vício que disse. Talvez por medo, ou por esperança. Medo de saber o final da história, assim como não sei o final da nossa. Pelo que li até agora, o mocinho guerreia inclusive contra ele mesmo. Será um livro a vida nossa? Medo... medo de não chegar ao final dela, a história. A história que me ofereceste e fechei ao chegar a metade, deixando somente a capa aparente.
Esperança? Sim. Por que não esperança? É nela que vislumbro um motivo. Ela também me alimenta. Ainda imagino o dia em que chegarei ao “... e viveram felizes para sempre”. Quem não imagina? E, nela, ainda acendo uma vela para podermos ler, juntos, o livro que me deste.
Por que fugi? Desculpa-me. Também não sei dizer. Trazia o medo comigo também naquele dia. Era agosto. Ou setembro? Se bem me lembro, tu irias e não mais voltarias. Irias para longe. Só ver-te-ia em meus pensamentos que com o tempo me deixam. Um médico disse que, por conta de uma pancada, minhas memórias , aos poucos, esvaiam-se. Mas, que raio de pancada foi essa de que não me lembro?
Por que não liguei? É. Eu sei. Não liguei, mesmo. Até hoje vivo arrependimentos. Li uma parte do livro em que o herói, ou melhor, o protagonista, perdeu um amor que nunca viu. Depois dizem do que só o amor constrói. Deve ele estar construindo até hoje uma escada até as nuvens para poder alcançá-lo. Isso deve torná-lo um herói, sem dúvidas. Herói manco! Manco das pernas, pois relutou em compartilhar seus sentimentos. E, agora, manco do coração, pois da alma do nobre: se não a usa, fica pobre. É isso que o tempo espreita. Neutro, mas implacável. Acredito que seja essa pobreza a mesma que me faz menos vívido. Desculpa-me se não liguei para...
O chá? Tu ainda te lembras disso? Achei que fosses esquecer. Sei que foste tu quem convidaste, mas só Deus sabe o quanto meus dedos tremiam nas teclas do telefone. Não paguei para ver e agora pago pelo que não vi... e ainda não vejo. Desejos transcendentes que nunca se alcançam!
Por quanto tempo esperaste junto ao telefone? Sem falsa modéstia mas, com pesares, imagino que alguns. Algumas também foram as vezes em que tentei, juro! Mas não soube ousar de um desejo que era puro. E, depois, a que brindaríamos aquele chá? A tua partida? Não. Não seria justo comigo. Não seria justo conosco. Talvez a tua felicidade. Isso, sim, talvez fosse uma página bonita dessa história. Mas, se me permites, seria esse teu final feliz? Perdoa-me se não liguei para...
Teu novo número? É verdade. Mais uma vez estás certa. Nem ao menos te procurei para saber teu novo telefone. Geralmente, também usa-se o telefone para matar as saudades; para saber como andam os queridos; e os não-queridos (por quê não?). O que acontece é que eu não queria matar nada a teu respeito, acho. Saudades. Que fossem elas um simples estímulo para poder procurar-te e suprir-me de teus olhares e sons. E, hoje, nem estes os tenho. Ainda me faltariam tato, olfato e sabor... Sandice pensar nisso tudo depois do que fiz. Do que deixei de fazer, melhor dizendo. Deus nunca oferece uma cruz de algodão a um gigante, nem de trevas a um grande amor. Devo estar carregando a minha de bom grado.
Perdão se não liguei, ... teu nome? Claro que me lembro! Nunca esqueceria! Mas, não me sinto à vontade em dizê-lo nessa carta. Não me deste e eu não soube usar do tempo para pedir-te a permissão de pronunciá-lo ou reproduzi-lo.
E é esta a razão pela qual estou escrevendo. Não sei onde estás. Nem sei se estás! Quem sabe os caminhos que esta carta irá correr até chegar a ti... se é que vai chegar! Não sei ainda se, sequer, vou mandá-la a algum canto. Porém, se resolver jogá-la ao céu e um dia ela pousar em teu colo, saberás quem eu sou (quero crer) e espero que me procures. Que me perdoes ou, senão, que digas que posso terminar o livro que me deste sem preocupar-me com um final feliz. Que eu não tenha medo de passar da metade. Que a vela que acendo em minhas esperanças não seja guardada e que a use da forma que bem entender. Que ela se desgaste até o dia em que não mais existir. Que o vício seja ler o livro inteiro, sozinho, e, não mais, somente a metade dele.
Meu telefone? Continua o mesmo, embora a cada dia, a cada minuto, corra-me o risco de trocá-lo.
Perdoa-me se não liguei para dizer que não iria ao chá a que me convidaste, pois não veria nele um motivo de alegria ou esperança de estar ao teu lado nos dias que o seguissem. Desculpa-me se não liguei para dizer que de todas as histórias que li, essa que me deste era a mais bonita e que não gostaria de chegar ao final dela, fechar o livro e enfeitá-la em minha estante, ao lado de outras que já nem lembro mais do enredo.